Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0022157-16.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Ituverava

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Ituverava

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.054, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Ituverava, de iniciativa parlamentar, que “Concede aos funcionários municipais 1/30 (um trinta avos) de seus vencimentos mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício”

2)      Preliminar. Na ação direta de inconstitucionalidade, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE) e considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de  poderes especiais.

3)      Mérito. Pertence exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa legislativa sobre o regime jurídico dos servidores públicos, assunto que abrange vantagem pecuniária pessoal componente da remuneração. Matéria sujeita a iniciativa legislativa do Poder Executivo no que se refere aos seus servidores, estando ainda maculada a lei pela ausência de fonte para cobertura de novos encargos financeiros (art. 25 da Constituição Estadual).

4)      Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, 25 e 128, da Constituição Estadual. Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 4.054, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Ituverava, de iniciativa parlamentar, que “Concede aos funcionários municipais 1/30 (um trinta avos) de seus vencimentos mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício” .

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violação dos princípios da independência e separação dos poderes, sob o fundamento de que compete privativamente ao Executivo legislar sobre benefícios aos servidores municipais. Afirma, ainda, a criação de encargos sem a indicação de recursos orçamentários. Aponta, assim, contrariedade aos arts. 5º, 25 e 144, da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspensão da vigência e eficácia da Lei nº 4.054, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Ituverava (fl. 82).

Citado regularmente (fl. 91), o Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 93/95).

Notificado (fl. 88), o Presidente da Câmara Municipal deixou de prestar informações a fls. 97/99.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

PRELIMINARMENTE

A petição inicial é subscrita apenas pelo advogado constituído pelo Prefeito Municipal (fl. 10), acompanhada de instrumento de mandato, sem poderes especiais para a propositura da presente ação (fls. 20).

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais, ou, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

No caso dos autos, figurou no polo ativo o Prefeito Municipal, porém a inicial foi assinada por seu advogado constituído, sem que no mandado de procuração houvesse previsão de poderes específicos para a impugnação dos atos normativos objeto da presente ação.

Assim sendo, requeiro seja o autor intimado para regularização de sua representação processual ou subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

NO MÉRITO

Procede o pedido.

A Lei nº 4.054, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Ituverava, de iniciativa parlamentar, que “Concede aos funcionários municipais 1/30 (um trinta avos) de seus vencimentos mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício”, tem a seguinte redação:

“Art. 1º. Fica conferido aos funcionários municipais, após vinte anos de efetivo exercício em cargo público do município, por ocasião das férias, quantia igual a 1/30 (um trinta avos) de seus vencimentos mensais, por dia de férias a que tenha direito, deduzida de 1/3 (um terço) sem prejuízo da remuneração habitual.

Parágrafo 1º - Os servidores que na data da publicação desta Lei contarem com mais de vinte anos de serviço efetivo, em cargo público do município, farão jus à importância constante do caput deste artigo e os demais assim que completarem aquele período, incluindo-se no cômputo os anos anteriores à edição da presente.

Artigo 2º - As despesas decorrentes desta Lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Artigo 3º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, retroagindo seus efeitos a -1 de janeiro de 2012, revogadas as disposições em contrário.”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, I, II e XIV e 128, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

Art. 128 - As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Verifica-se que a lei municipal impugnada disciplina direitos dos servidores públicos a 1/30 (um trinta avos) de seus vencimentos mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício.

A inconstitucionalidade manifesta-se pela invasão da esfera da iniciativa legislativa privativa do Poder Executivo que não se confunde com a chamada reserva da administração (art. 47, II e XIV da Constituição Estadual).

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e da harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, o ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou de matéria relativa a direitos e garantias das servidores públicos disciplinando aspectos integrantes de seu regime jurídico, cuja iniciativa cabe ao Chefe do Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 1 e 4).

Tal regramento deve ser observado pelos municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da Constituição Paulista.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos, como ocorre, no caso em exame, em função da previsão de vantagens pecuniárias para os servidores municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

A criação de direitos e vantagens aos servidores públicos é atividade nitidamente administrativa, representativa de ato de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 24, § 2°, 1 e 4 e 144).

Neste sentido, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 740/2003, do Estado do Amapá. Competência legislativa. Servidor Público. Regime jurídico. Vencimentos. Acréscimo de vantagem pecuniária. Adicional de Desempenho a certa classe de servidores. Inadmissibilidade. Matéria de iniciativa exclusiva do Governador do Estado, Chefe do Poder Executivo. Usurpação caracterizada. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, alínea ‘a’, da CF, aplicáveis aos estados. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei que, de iniciativa parlamentar, conceda ou autorize conceder vantagem pecuniária a certa classe de servidores públicos” (STF, ADI 3.176-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 30-06-2011, v.u., DJe 05-08-2011).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. CONCESSÃO DE VANTAGENS PECUNIÁRIAS A SERVIDORES PÚBLICOS. SIMETRIA. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. As regras de processo legislativo previstas na Carta Federal aplicam-se aos Estados-membros, inclusive para criar ou revisar as respectivas Constituições. Incidência do princípio da simetria a limitar o Poder Constituinte Estadual decorrente. 2. Compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis, lato sensu, que cuidem do regime jurídico e da remuneração dos servidores públicos (CF artigo 61, § 1º, II, ‘a’ e ‘c’ c/c artigos 2º e 25). Precedentes. Inconstitucionalidade do § 4º do artigo 28 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte. Ação procedente” (STF, ADI 1.353-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 16-05-2003, p. 89).

A propósito, convém destacar a seguinte decisão desse Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de membro do Poder  Legislativo que  dispõe sobre a concessão de  auxílio-alimentação  aos servidores. Matéria  inserida na reserva de iniciativa do Chefe do  Executivo.  Separação dos Poderes. Ofensa aos art. 5º, "caput", da CESP, e  a 2° da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADI nº 0269127-61.2011.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21 de março de 2012)

Ampliar direitos e garantias do servidor público – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

De outro lado, a vantagem criada, destinada à valorização do trabalho do servidor público com mais de 20 anos de serviço, destoa dos princípios de moralidade, impessoalidade, razoabilidade e do interesse público constantes do art. 111 da Constituição Estadual que reproduz o art. 37 da Constituição Federal.

Enquanto a razoabilidade serve como parâmetro no controle da legitimidade substancial dos atos normativos, requerente de compatibilidade aos conceitos de racionalidade, justiça, bom senso, proporcionalidade etc., interditando discriminações injustificáveis e, por isso, desarrazoadas, a moralidade se presta à mensuração da conformidade do ato estatal com valores superiores (ética, boa fé, finalidade, boa administração etc.), vedando atuação da Administração Pública pautada por móveis ou desideratos alheios ao interesse público (primário) – ou seja, censura o desvio de poder que também tem a potencialidade de incidência nos atos normativos.

Por sua vez, a impessoalidade proíbe discriminações e privilégios destituídos de relação lógica entre o elemento discriminante e a finalidade da discriminação para além daquelas consignadas na Constituição, se imbricando ao interesse público (finalidade) de maneira a guiar a Administração Pública para satisfação do bem comum e não para distribuição de regalias, privilégios ou mordomias.

Importante ressaltar que o art. 128 da Constituição Estadual, inspirado pelos princípios constitucionais anteriormente mencionados, impede a outorga de vantagens pecuniárias aos servidores públicos que não atendam as necessidades do serviço além do interesse público. Na hipótese dos autos não se vislumbra razoabilidade e nem necessidade do serviço a inspirar a vantagem do acréscimo de 1/30 (um trinta avos) dos vencimentos mensais do servidor, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novos encargos financeiros para municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida ao instituir a campanha a ser desenvolvida pelo município, não indicou os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto criam vantagens pecuniárias retroativas, cuja implantação demanda meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

A ausência de indicação desses recursos implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

         Diante do exposto, aguarda-se caso regularizada a representação processual da autora, seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 4.054, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Ituverava.  

            

        São Paulo, 16 de maio de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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