Parecer
Processo nº 0026430-38.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 6.815, de 16 de março de 2011, de Guarulhos, que dispõe sobre “O USO DE COPOS REUTILIZÁVEIS (CANECA ECOLÓGICA) POR FUNCIONÁRIOS DE TODAS AS REPARTIÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA DESTE MUNICÍPIO”.
2) Iniciativa parlamentar. Matéria reservada ao chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa. Criação de obrigação e despesas para a Administração. Ofensa aos artigos 5º; 24, § 2º, n. 2; 25; 47, incs. II, XIV e XIX, “a”; 144; e 176, I, da Constituição Estadual.
3) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por objeto a Lei Municipal nº 6.815, de 16 de março de 2011, daquele município, que dispõe sobre “O USO DE COPOS REUTILIZÁVEIS (CANECA ECOLÓGICA) POR FUNCIONÁRIOS DE TODAS AS REPARTIÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA DESTE MUNICÍPIO”.
O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
O pedido de liminar foi deferido (fls. 40).
Citado, o Senhor Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 51/52).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 54/60, em defesa da norma impugnada.
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Em
que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se
transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente
incompatível com nossa sistemática constitucional, sobretudo por impor formas
de conduta aos órgãos municipais.
A lei, de iniciativa parlamentar, que
cria obrigações concretas à Administração Pública, especificando quais tipos de
copos devem ser utilizados em seu cotidiano, é inconstitucional.
Não
há dúvida de que a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas
intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é
inconstitucional, por violar o disposto nos arts. 5º; 24, § 2º, n. 2; 47,
incs. II, XIV e XIX, “a”; 144; e 176, I, os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)
§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
(...)
2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)
Art. 176 - São vedados:
I - o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;”
É ponto pacífico na doutrina, bem como na
jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e
execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder
Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração
Pública local.
Abstraindo quanto aos motivos que podem
ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa,
que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a
Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos
órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a
Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico
e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo
edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de
funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro,
15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São
Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de
legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na
prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência
que devem existir entre os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado
a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que
interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados, transcritas a seguir:
“Ação direta
de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São
José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos
edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência
entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.”
(TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de
setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a
obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos
das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta
utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa
parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do
Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no
exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder
Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual.
JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j.
05.03.2008).
Assim se fez constar no
despacho que deferiu a liminar na ADIn 990.10.073579-9:
“Impõe-se, à partida, a apreciação do
pedido liminar, que fica deferido.
Evidente o fumus boni juris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel.
EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora
iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel
reciclado.
Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, poquanto a obrigação
imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na
prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da
administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às
aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.
Ademais, não faz o menor sentido
manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua
regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre
Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de
inconstitucionalidade formal” (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j.
1º.03.2010).
Cabe ainda ressaltar que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.
Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.
E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do chefe do Executivo, seria inconstitucional.
A razão é simples: o chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.
A norma combatida ao instituir obrigações ao Poder Executivo não indica especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto determina a aquisição dos copos reutilizáveis e descartáveis pela Administração Pública, que demanda meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.
A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.
A propósito da questão em análise nesses autos, esse Colendo Órgão Especial já se pronunciou reiteradamente acerca da inconstitucionalidade das leis que deliberam acerca de atividade típicas da Administração. Senão vejamos:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei do Município de Americana nº 4.972/2010, a qual cria o Programa de Internet Banda Larga Gratuita no Município. Inadmissibilidade. Tema relativo a atos de gestão. Ingerência do Legislativo em matéria de competência privativa do Executivo. Vedação. Arts. 37, X, e 169, § 1º, I e II, da CF/88 e arts. 5º, § 2º, 47, II, XIV, 25 e 144, todos da Constituição Paulista Ação julgada procedente. Deve ser julgada procedente ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal que abriga matéria de competência privativa do Executivo, pelo vício de iniciativa e por afrontar o princípio da separação e harmonia entre os Poderes.” (Adin 0180003-33.2012.8.26.0000. Rel. Des. Luis Ganzerla, j. 05/12/2012)
“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Catanduva que autorizou o Executivo a fornecer muro de estádio municipal para publicidade - Vício de iniciativa - Lesão ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de caráter administrativo, por se referir à gestão de bens públicos - Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei 5.282/09, do Município de Catanduva.” (Adin 0053802-93.2012.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 27/06/2012)
“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, que cria programa de assistência à gestante e ao recém-nascido - Vício de iniciativa - Violação ao princípio da separação de Poderes (art. 5o, da Constituição Estadual) - Ingerência na competência do Executivo, por atribuir-lhe obrigações e interferir em questões atinentes à administração pública - Ação procedente.” (Adin 0027900-41.2012.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 12/09/2012)
“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei Municipal n. 6.988, de Guarulhos - Ato normativo que institui o programa de equoterapia, destinado a crianças e adultos com deficiência física e/ou mental ou com distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes - Norma de iniciativa parlamentar - Programa que engloba a gestão administrativa pública - Teoria dos poderes implícitos - Criação indireta de cargos públicos na administração direta - Impossibilidade - Vício de iniciativa - Inteligência dos arts. 24, § 2o, 1, art. 47, II, e 144, da CE - Precedentes deste E. Órgão Especial e do C. STF - Despesa com remuneração não acompanhada de previsão legal e prévia dotação orçamentária - Gastos com instituição e manutenção do programa sem a correspondente indicação de receita Afronta aos arts. 25 e 169, p.ú., 1, da CE. Inconstitucionalidade reconhecida.” (Adin 0070117-02.2012.8.26.0000. Rel. Des. Grava Brasil, j. 08/08/2012)
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 6.815, de 16 de março de 2011, do Município de Guarulhos.
São Paulo, 24 de maio de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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