Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0047829-26.2013.8.26.0000

Requerente: Mesa Diretora da Câmara Municipal da Estância Turística de São Roque

Requeridos: Presidente da Câmara Municipal da Estância Turística de São Roque e Prefeito Municipal da Estância Turística de São Roque

 

 

 

Ementa:

 

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. § 3º do art. 137, da Lei Orgânica do Município de São Roque, inserido por Emenda de iniciativa parlamentar, que veda a nomeação de pessoas cujos nomes estejam inscritos no rol de inadimplentes de cadastros das agências de proteção de crédito e afins para os cargos de provimento em comissão.

2)     Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

3)     A restrição imposta não é proporcional, necessária e adequada para a garantia da eficiência do serviço público. Violação aos princípios de razoabilidade e de proporcionalidade (art. 111 da Constituição Estadual)

4)     Afronta ao princípio do pleno emprego e do livre exercício da atividade econômica (art. 170, VIII e parágrafo único da Constituição Federal), aplicáveis ao legislador Municipal por força do art. 144 da Constituição Estadual. Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo o § 3º do art. 137, da Lei Orgânica do Município de São Roque, inserido pela Emenda nº 36, de 10 de dezembro de 2012.

Sustenta a requerente que o ato normativo impugnado, fruto de emenda parlamentar, é inconstitucional por conter vício de iniciativa uma vez que cuida do regime jurídico dos servidores públicos, por ser discriminatória e por violar o princípio da livre nomeação para os cargos de provimento em comissão. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4,  115, II e 144 da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender com efeitos ex nunc o ato normativo impugnado (fls. 62/63).

Citado regularmente (fl. 75), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 77/78).

Notificado (fl. 71), o Prefeito Municipal de São Roque apresentou informações sustentando a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado (fls. 81/85).

O Presidente da Câmara Municipal de São Roque prestou informações a fls. 87/89.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

DA CAUSA DE PEDIR ABERTA

Inicialmente, oportuno consignar que a ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão, é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

A causa de pedir consiste na violação a Constituição Estadual, razão pela qual tem sido denominada como causa de pedir aberta possibilitando no controle concentrado de constitucionalidade o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

 

“Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno, DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

Confira-se, ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

DAS VIOLAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Passa-se, assim, ao exame do mérito da ação direta.

Procede o pedido.

O § 3º do art. 137, da Lei Orgânica do Município de São Roque, inserido pela Emenda nº 36, de 10 de dezembro de 2012, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

(...)

Art. 137.  Os cargos em comissão e funções de confiança na administração pública, serão exercidos, preferencialmente, por servidores ocupantes de cargos de carreira técnica ou profissional, nos casos e condições previstas em lei.

(...)

§ 3º - É vedada a nomeação de pessoas cujos nomes estejam inscritos no rol de inadimplentes de cadastros das agências de proteção de crédito e afins para os cargos de provimento em comissão de chefia, direção e assessoramento dos Poderes Executivo e Legislativo da Estância Turística de São Roque.

(...)

Verifica-se que o dispositivo legal, a pretexto de preservação da ética e da probidade, restringiu a nomeação para os cargos de provimento em comissão de pessoas que tiverem o nome inscritos nos cadastros de inadimplentes.

Inicialmente, importante ressaltar que não há inconstitucionalidade por vício de iniciativa, pois o estabelecimento de restrições gerais ao acesso aos cargos, funções e empregos públicos não se trata de privativa atividade administrativa (ou executiva), mas sim de função de Estado.

A previsão, através de lei, de contenções de acessibilidade ao serviço público não se insere na atividade de organização da Administração Pública, mas de condições de acesso ao serviço público em geral, inclusive do Poder Legislativo.

O chefe do Poder Executivo tem iniciativa legislativa reservada para a criação e extinção de cargos públicos (art. 24, § 2º, 1 e 4, CE; art. 61, § 1º, II, a e c, CF), não se situa neste domínio o estabelecimento de condições gerais para o provimento de cargos públicos.

Nestes termos, esta Procuradoria-Geral de Justiça, com o aval desse C. Órgão Especial, vem sustentando que lei municipal de iniciativa parlamentar que dispõe sobre a nomeação para cargos de provimento em comissão, adotando restrições semelhantes às da “Lei Ficha Limpa”, não viola a regra da separação dos poderes.

A hipótese dos autos é diversa, pois a restrição é de natureza privada referente à existência de informações em banco de dados onde são registrados os nomes de consumidores inadimplentes.

A inconstitucionalidade manifesta-se não por consistir em ato de discriminação ou por violar a regra da livre nomeação para os cargos de provimento em comissão, mas por violação do princípio da razoabilidade e da limitação ao exercício da atividade econômica e da busca do pleno emprego, princípio geral da atividade econômica, previstos respectivamente nos arts. 111 da Constituição Estadual e 170, VIII e parágrafo único da Constituição Federal, da seguinte forma:

“(...)

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência

(...)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

VIII - busca do pleno emprego

(...)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

(...)”

A restrição imposta pelo ato normativo impugnado mostra-se excessiva, inadequada, desproporcional e não isonômica para os fins pelos quais foi concebida, contrariando o princípio da razoabilidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa nos termos do art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

Impedir o acesso aos cargos de provimento em comissão a pessoas que tenham o nome em banco de dados de inadimplentes não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade:

 (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, uma vez que não há relação direta entre a atividade privada do indivíduo e a atividade pública a ser desempenhada, mesmo porque a generalização acaba por atingir pessoas que motivos diversos foram levadas a não pagar o débito, seja o mau pagador, seja aquela que temporariamente passou por período de dificuldade econômica, bem como aquela que não pagou por entender não ser devedora e optou pela discussão judicial do débito

(b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público, pois a simples inadimplência não é o melhor e único critério para aferir a ilibada reputação, a ética e a probidade que foram tomadas como justificativa para a propositura da Emenda Parlamentar nos termos da sua exposição de motivos (fl. 12);

(c) é desproporcional em sentido estrito, pois cria situação insustentável na medida em que a restrição imposta não é condição para o ingresso no serviço público e nem mesmo causa para a exoneração de qualquer servidor.

Em suma, não se mostra razoável imaginar que alguém só esteja apto para o exercício dos cargos de provimento em comissão se não tiver o nome inscrito em banco de dados de inadimplentes.

Embora a situação econômica de uma pessoa no que se refere aos seus compromissos financeiros seja muito importante e deve ser considerado pelo chefe do Poder Executivo por ocasião da nomeação para os cargos de confiança, por mais importantes e exigentes que sejam as funções a serem desempenhadas, tanto do ponto de vista emocional, físico, psicológico, intelectual, não se mostra razoável asseverar que não estão aptos a tais atividades pessoas que tenham seus nomes inscritos em bancos de dados de inadimplentes, pois até mesmo no universo de tais indivíduos, é possível encontrar aqueles em condições do desempenho dos encargos de confiança, haja vista que a simples inadimplência não é sinônimo de inidoneidade.

A restrição excessiva, como a que operou a lei municipal em exame, mostrou-se despida de razoabilidade, e por essa razão ofensiva à isonomia de tratamento daqueles que possam ser nomeados para os cargos de provimento em comissão.

É importante ressaltar que as pessoas tem o direito de discutir, até pela via judicial, a legitimidade e o valor das obrigações pecuniárias de toda sorte que motivaram unilateralmente o registro de seus nomes nos bancos de dados de inadimplentes.

O ato normativo dá ao cadastro valor absoluto de prova da falta de ética, probidade e idoneidade das pessoas neles inscrita, inconcebível com o nosso regime de Estado de Direto, onde nem mesmo outros diplomas normativos, sobretudo os que definem as condições de elegibilidade, animaram-se a inserir dispositivo de tal natureza como condição aos cargos eletivos, não menos importantes dos cargos de provimento em comissão.

Vale ainda ressaltar que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna. Nestes termos o exercício do emprego ou de um cargo público não deixa de ser uma atividade econômica e o pleno emprego é um dos princípios da atividade econômica (art. 170, VIII da Constituição Federal).

A liberdade assegurada a todos para o exercício de qualquer atividade econômica pode ser limitada, sobretudo na Administração Pública, no entanto, a restrição que a lei impor deve atender aos princípios da razoabilidade e do interesse público que na hipótese dos autos não se verificam.

Por isso, em que pese o elevado propósito que inspirou o parlamentar, autor da emenda, o dispositivo impugnado é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com o seu arts. 111 e com o art. 170, VIII e parágrafo único da Constituição Federal aplicável aos municípios por força do art. 144 da Constituição Estadual.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade do § 3º do art. 137 da Lei Orgânica do Município de São Roque.

 

São Paulo, 11 de junho de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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