Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0049391-70.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Campinas

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Campinas

 

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 14.128, de 27 de setembro de 2011, do Município de Campinas, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a instituição e criação do disk criança e adolescente, destinado a atender denúncias de maus tratos, abandono ou qualquer outra forma de violência contra crianças e adolescentes, e dá outras providências.”

2) A criação de órgão na Administração Pública é matéria de iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo, assim como é a instituição de programas e serviços públicos, por órgãos do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar.

3) Disciplinar as ações que compõem o “disk criança e adolescente” é matéria de competência privativa do Executivo, que por seu órgão executivo próprio tem o poder de regulamentar tais ações.

4) Projeto nascido no Poder Legislativo, com usurpação das atribuições do Prefeito. Violação do princípio da separação dos poderes. Lei, ademais, que cria despesas, sem indicar a origem dos recursos disponíveis para arcar com os novos encargos. Constituição Estadual: arts. 5º, 24, § 2º, n. 2, 47, II e XIV e 144. Parecer pela declaração da inconstitucionalidade.

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 14.128 de 27 de setembro de 2011, do Município de Campinas, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a instituição e criação do disk criança e adolescente, destinado a atender denúncias de maus tratos, abandono ou qualquer outra forma de violência contra crianças e adolescentes, e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa e violação do princípio da separação dos poderes, além de não indicar a origem dos recursos para arcar com os novos encargos. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 24, 25, 37, 47, II, XI e XIV, 111, 144, 174, I a III e 176, I, da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender, com eficácia ex nunc, a vigência do ato normativo impugnado (fls. 192/193).

Citado regularmente, o Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 220/222).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações, defendendo a validade do ato normativo impugnado, (fls. 203/208).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente.

A Lei nº 14.128 de 27 de setembro de 2011, do Município de Campinas, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a instituição e criação do disk criança e adolescente, destinado a atender denúncias de maus tratos, abandono ou qualquer outra forma de violência contra crianças e adolescentes, e dá outras providências.”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica instituído no Município de Campinas, o DISK CRIANÇA E ADOLESCENTE, que permitirá à população em geral encaminhar denúncias, reclamações ou representações que envolvam maus tratos, abandono ou qualquer outra forma de violência contra crianças e adolescentes.

Art. 2º - As denúncias, reclamações e representações serão recebidas em caráter sigiloso, e serão encaminhadas aos Conselhos Tutelares do Município de Campinas, de acordo com a sua circunscrição abrangente, ou órgão permanente e autônomo encarregado de zelar pelo cumprimento dos Direitos da Criança e do Adolescente, instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.

Art. 3º - Tanto os estabelecimentos de ensino municipal, as Subprefeituras, as Unidades Básicas de Saúde deverão manter afixados, em locais visíveis, cartazes contendo os telefones do DISK CRIANÇA E ADOLESCENTE, bem como seus endereços físico e eletrônico.

Art. 4º - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

Art. 5º - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias.”

O pedido deve ser examinado pelo cotejo da lei em análise com os arts. 5º, 24, § 2º, n. 2, 47, II e XIV, e 144, da Constituição Estadual, a seguir reproduzidos:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

A Lei nº 14.128 de 27 de setembro de 2011, do Município de Campinas, objeto desta ação direta, além de criar e instituir o “Disk Criança e Adolescente”, gera, ainda, obrigações e fixa condutas para a Administração Municipal, ao ditar como serão recebidas as “denúncias e reclamações” (art. 2º) e, ainda, determina às Subprefeituras e Unidades Básicas de Saúde que mantenham afixados “cartazes contendo os telefones do DISK CRIANÇA E ADOLESCENTE, bem como seus endereços físico e eletrônico” (art. 3º).

Neste sentido, considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe (o projeto é de autoria do Vereador Alberto Alves da Fonseca – cf. fls. 12/13), é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Ao Poder Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando obrigações ou disciplinando a forma de prestação do serviço público, com novas despesas, como ocorre no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

E os atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos arts. 5º, 37 e 47, II e XIV, da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade de programas em benefício seus servidores. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

“A Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante (...) todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2006, 15ª ed., pp. 708, 712, atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos.

Neste sentido, já proclamou esse Egrégio Tribunal que:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (ADI n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares).

E nesta linha, verificando a inconstitucionalidade por ruptura do princípio da separação de poderes, este Egrégio Tribunal de Justiça vem declarando a inconstitucionalidade de leis similares (ADI 117.556-0/5-00, Rel. Des. Canguçu de Almeida, v.u., 02-02-2006; ADI 124.857-0/5-00, Rel. Des. Reis Kuntz, v.u., 19-04-2006; ADI 126.596-0/8-00, Rel. Des. Jarbas Mazzoni, v.u., 12-12-2007; ADI 127.526-0/7-00, Rel. Des. Renato Nalini, v.u., 01-08-2007; ADI 132.624-0/6-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, m.v., 24-10-2007; ADI 142.130-0/0-00, Rel. Des. Ivan Sartori, 07-05-2008).

O vício de iniciativa conduz à declaração de inconstitucionalidade da lei, que não se convalida com a sanção ou a promulgação de quem deveria ter apresentado o projeto. É da jurisprudência que “o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer em que o Legislativo as exerça” (ADIn 13.798-0, rel. Dês. Garrigós Vinhares, j. 11.12.1991, v.u.).

Não prosperam, contudo, as alegações de violação aos arts. 111, 174, I e 176, I, da Constituição Estadual.

Ocorre que, quanto ao art. 111, estar-se-ia violando o princípio da legalidade.

Contudo, tal princípio é imposto à Administração, proibindo-a da prática de atos outros que não sejam típicos. Ou seja, fica a Administração adstrita à prática tão somente daqueles atos que se encontrem devidamente autorizados por lei.

Longe, portanto, da produção legislativa, que encontra seu nascedouro no Poder Legislativo e não no Executivo.

No que tange ao art. 174, I da CE, a diferente conclusão de inaplicabilidade ao caso em tela não se chega, porquanto não se trate, obviamente, a vergastada norma, de Lei Orçamentária. Versa, como já dito, de um programa de governo, com objetivo de atender a denúncias de maus tratos, abandono ou qualquer outra forma de violência contra crianças e adolescentes, sem que importe em disposição orçamentária de qualquer sorte.

Por fim, também não se aplica o art. 176, I da Constituição Bandeirante, porquanto já tenha sido consolidado o entendimento na Suprema Corte de que a proibição é de início de programa, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual, no exercício da vigência da lei, nada impedindo que seja incluído no orçamento do ano seguinte. Este mesmo raciocínio aplica-se igualmente à proibição embutida no art. 25 da CE.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 14.128, de 27 de setembro de 2011, do Município de Campinas.

São Paulo, 14 de outubro de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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