Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0049539-81.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Jundiaí

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Jundiaí

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 7.616, de 20 de dezembro de 2010, de Jundiaí, fruto de iniciativa parlamentar, que “Permite a instalação de caixas eletrônicos nos terminais rodoviários urbanos que especifica”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal (reserva de Administração). Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3)      Impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade com fundamento no art. 25 da Constituição do Estado. Precedentes do STF.

4)      Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Municipal nº 7.616, de 20 de dezembro de 2010, de Jundiaí, fruto de iniciativa parlamentar, que “Permite a instalação de caixas eletrônicos nos terminais rodoviários urbanos que especifica”.

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompatibilidade vertical com nosso sistema constitucional, por ofensa aos artigos 5º, 47, caput, incisos II, XI e XIV, 25 e art. 144 da Constituição do Estado, bem como a contrariedade a dispositivos contidos em normas infraconstitucionais.

Foi deferido o pedido de liminar (fls. 60/64).

Citado, o Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa quanto ao ato normativo (fls. 73, 75/76).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 38/41).

É o relato do essencial.

Preliminarmente, cumpre salientar que, em se tratando de ação direta de inconstitucionalidade, descabe a realização do exame do argumento, alegado pelo requerente, de eventual conflito entre a lei impugnada e outras normas infraconstitucionais, como, por exemplo, a Lei Orgânica do Município.

A análise a ser realizada no âmbito do processo objetivo cinge-se ao conflito entre a lei e o parâmetro constitucional de controle, sem a possibilidade de exame de fatos ou mesmo de inconstitucionalidades indiretas ou reflexas.

Pois bem.

A Lei Municipal nº 7.616, de 20 de dezembro de 2010, de Jundiaí, fruto de iniciativa parlamentar, que “Permite a instalação de caixas eletrônicos nos terminais rodoviários urbanos que especifica”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Serão instalados caixas eletrônicos de auto-serviço nos seguintes terminais rodoviários urbanos:

I – ‘Governador Mário Covas’ (Centro);

II – ‘Aldo Marani’ (Vila Arens); e

III - ‘Elizabeth Paschoal Manzan’ (Vil Hortolândia).

Parágrafo único. Tais caixas destinar-se-ão ao pagamento de contas de água, luz, telefone e demais boletos bancários, bem como à retirada e depósito de numerário, consulta de saldo e extrato.

Art. 2º. Caberão à Secretaria municipal de Transportes as providências para tal instalação.

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

O ato normativo em análise viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, bem como decorrente do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

A lei municipal hostilizada é fruto de iniciativa parlamentar, determinando a instalação de caixas eletrônicos, pela Administração Pública do Município, em terminais rodoviários urbanos.

Em que pese a boa intenção que certamente animou o Vereador autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo determinar ou não a realização a referida providência específica para fins de, supostamente, melhorar a qualidade dos serviços prestados à comunidade local, é atitude que cabe exclusivamente à Administração Pública do Município.

         Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema, pois se está diante daquilo que deve ser designado como competência estritamente administrativa ou “reserva de administração”.

Nesse sentido o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, aplicável à hipótese mutatis mutandis:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais. (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)

Ofende a denominada reserva de administração, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes (CF, art. 2º), a proibição de cobrança de tarifa de assinatura básica no que concerne aos serviços de água e gás, em grande medida submetidos também à incidência de leis federais (CF, art. 22, IV), mormente quando constante de ato normativo emanado do Poder Legislativo fruto de iniciativa parlamentar, porquanto supressora da margem de apreciação do chefe do Poder Executivo Distrital na condução da administração pública, no que se inclui a formulação da política pública remuneratória do serviço público. (ADI 3.343, Rel. p/ o ac. Min. Luiz Fux, julgamento em 1º-9-2011, Plenário, DJE de 22-11-2011.)

(...)

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Tal afirmação encontra apoio na autorizada doutrina de Hely Lopes Meirelles (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

Mesmo que se sustentasse que se trata de mera “lei autorizativa”, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público, não se chegaria à conclusão diversa, a não ser de que a lei é inconstitucional.

Em trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

“(...)

Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (...).

 Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

 Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

Uma última observação.

Não deve ser acolhido o argumento de que a lei é inconstitucional por contrariedade ao art. 25 da Constituição do Estado.

Por força do referido dispositivo “nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos”.

Para saber se a lei em exame provocará o aumento de despesas e se as receitas indicadas seriam ou não suficientes, seria indispensável o exame de questões de fato, o que não é possível no processo objetivo.

Note-se que seja o art. 102, I, “a”, da CF, em relação ao controle concentrado de constitucionalidade no STF, seja ainda o art. 125, § 2º, da CF, relativamente ao controle concentrado no Tribunal de Justiça, autorizam as Cortes constitucionais, no exercício da função de legislador negativo, apenas a realizar o confronto direto entre a lei e a Constituição, não as habilitando ao exame de questões de fato.

O Supremo Tribunal Federal já assentou, nesse sentido, posicionamento a respeito do tema. Confira-se:

“(...)

A ausência de dotação orçamentária prévia em legislação específica não autoriza a declaração de inconstitucionalidade da lei, impedindo tão-somente a sua aplicação naquele exercício financeiro. 8. Ação direta não conhecida pelo argumento da violação do art. 169, § 1º, da Carta Magna. Precedentes : ADI 1585-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ 3.4.98; ADI 2339-SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, unânime, DJ 1.6.2001; ADI 2343-SC, Rel. Min. Nelson Jobim, maioria, DJ 13.6.2003. 9. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e, na parte conhecida, julgada improcedente (RTJ 202/569).

(...)

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.616, de 20 de dezembro de 2010.

São Paulo, 12 de agosto de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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