Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0051565-52.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Jundiaí

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Jundiaí

 

 

 

 

Ementa:

1) Ação Direta de Inconstitucionalidade movida por Prefeito Municipal em face da lei municipal que proíbe a utilização de cães na prestação de serviço de vigilância.

2) Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

3) Ato normativo que trata de assunto de interesse geral. Legislação que se reveste de nítido caráter comercial, de competência do legislador federal (art. 22, inciso I, da Constituição Federal). Violação do princípio federativo, cuja observância é obrigatória para os Estados e Municípios (arts. 1º e 18º da Constituição Federal e art. 144 da Constituição do Estado). Violação da livre iniciativa e da livre concorrência. Princípios gerais da atividade econômica aplicáveis aos Estados e Municípios (art. 170, caput, e inciso IV da Constituição Federal, e art. 144 da Constituição do Estado). Matéria objeto da lei questionada que transcende a predominância do interesse local. Violação do art. 111 da Constituição Estadual, dada a desproporcionalidade e a falta de razoabilidade do valor da multa fixado. Inconsistência de violação ao art. 25 da Constituição do Estado, porque a norma não cria direta e imediatamente obrigações financeiras para o poder público, impondo deveres somente aos particulares, não bastasse veicular questão de fato dependente de prova.

4) Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade contestando a Lei n. 7.979, de 17 de dezembro de 2012, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, sob alegação de violação aos arts. 5º, 25, 47, II e XIV, 111 e 144 da Constituição Estadual e ao art. 170 da Constituição Federal.

         O pedido de liminar foi deferido (fls. 22/23).

          A douta Procuradoria Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 34/34).

         O Presidente da Câmara Municipal de Jundiaí prestou informações (fls. 37/39).

         É o relatório.

         A ação merece ser julgada procedente.

 

Inicialmente oportuno consignar que a ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

A causa de pedir consiste na violação à Constituição Estadual, razão pela qual tem sido denominada como causa de pedir aberta, possibilitando, no controle concentrado de constitucionalidade, o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

         Feitas essas considerações, a Lei n. 7.979, de 17 de dezembro de 2012, do Município de Jundiaí, que “veda usar cães na prestação de vigilância”, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º - É vedado usar cães em prestação de serviços, contrato mútuo de locação, comodato e cessão para fins de vigilância, considerando-se responsável o tutor do animal, o proprietário do imóvel objeto de vigilância e quem contrate por escrito ou verbalmente o uso de cães para tal fim.

Art. 2º - Ao infrator desta lei aplicar-se-á multa de R$ 28.000,00 (vinte e oito mil reais), por animal, dobrada na reincidência, progressivamente, respeitado o período de 24 (vinte e quatro) horas para a aplicação da nova penalidade, sem prejuízo de outras penalidades decorrentes de casos de maus- tratos contra o animal, nos termos da legislação federal, estadual e municipal.

Art. 3º - Ao infrator desta lei é assegurada:

I- Defesa prévia perante a repartição de zoonoses, no prazo de 10 (dez) dias, a contar da autuação, sem efeito suspensivo da ação fiscal;

II- recurso ao Secretário Municipal de Saúde, no prazo de 10 (dez) dias, a contar da ciência do indeferimento da defesa prévia, sem efeito suspensivo da ação fiscal.

Parágrafo único. Decorrido o prazo de (dez) dias sem quitação da multa, o débito será inscrito em dívida ativa.

Art. 4º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

Assenta a inicial que a norma acima descrita violou o princípio da separação de poderes, na medida em que interveio na seara de atribuições do chefe do Executivo, além de acarretar aumento de despesa.   

De fato, trata-se de norma inconstitucional, mas não pelos argumentos acima expendidos; com efeito, a inconstitucionalidade ocorre porque a Lei n. 7.979, de 17 de dezembro de 2012, do Município de Jundiaí, suplanta os limites da autonomia municipal radicados nos incisos I e II do art. 30 da Constituição Federal e invade a competência legislativa da União, além de não apresentar predominante interesse local.

Importante observar que a reserva de iniciativa legislativa do chefe do Poder Executivo deve ser expressa e taxativa em obséquio ao princípio da separação dos poderes e à regra da iniciativa legislativa comum ou concorrente (arts. 2º e 61, caput e § 1º, Constituição Federal; arts. 5º e 24, § 2º, Constituição Estadual), não sendo presumida. Igualmente não se constata a existência de reserva da Administração contida no art. 47, II, XIV e XIX, da Constituição Estadual, porque a matéria não se amolda em qualquer dessas disposições que permitem, excepcionalmente, a emissão de atos normativos pelo chefe do Poder Executivo sem interferência do Poder Legislativo.

As normas do processo legislativo federal são de observância simétrica para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“(...) a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 

As reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

 

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

 

A lei não tratou de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao chefe do Poder Executivo.

A matéria sujeita à iniciativa reservada do chefe do Poder Executivo, por ser direito estrito, deve ser interpretada restritivamente, como se decidiu (STF, ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, 02-04-2007, DJe 15-08-2008; ADI-MC 724, Rel. Min. Celso de Mello, 07-05-1992, DJ 27-04-2001; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, DJ 17-11-2006).

As matérias em que há iniciativa legislativa reservada ao chefe do Poder Executivo, em conformidade com a Constituição do Estado de São Paulo, são indicadas taxativamente no art. 61, § 1º, II, da Constituição Federal (reproduzido no art. 24, § 2º, da Constituição do Estado), e cuja leitura revela claramente que a lei não trata de nenhum dos assuntos arrolados.

Está claro, porém, que a lei local contestada que proíbe a utilização de cães na prestação de serviços de vigilância ofende a repartição constitucional de competências.

Força convier ser descabido o contraste de outras normas senão a Constituição Estadual no controle concentrado de constitucionalidade via ação direta de lei municipal, consoante disposto no art. 125, § 2º, da Constituição Federal. Mas, e tendo em vista o conceito de causa de pedir aberta aplicável ao controle concentrado de constitucionalidade (RTJ 200/91), é cabível o contraste da lei local com a Constituição Federal a partir da norma remissiva contida no art. 144 da Constituição Estadual.

O art. 144 da Constituição Estadual - que reproduz o art. 29, caput, da Constituição Federal - determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

O art. 144 da Constituição Paulista determina que “Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Por força desse artigo, os princípios essenciais estabelecidos na Constituição Federal devem ser respeitados pelos Estados e Municípios, servindo como parâmetro para o controle concentrado de constitucionalidade das leis no âmbito da Justiça Estadual.

De outro lado, o princípio federativo está assentado no art. 1º e no art. 18, caput, da Constituição Federal, determinando este último que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.

A Carta Magna estabelece os termos da repartição de competências, que é corolário do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art.1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13ªed., ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.96).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia, e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.”  Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda, como visto, proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art.60 § 4º inciso I da CF).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do Pretório Excelso, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"Mais do que isso, a ideia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

 Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

E na hipótese em exame, o art. 22, I, da Constituição Federal atribui privativamente à União legislar sobre norma que se reveste de nítido caráter comercial (direito civil).

É evidentemente matéria de interesse geral (e não apenas estadual ou local) a proibição de utilização de cães na prestação de serviços de vigilância, atividade que ocorre em todo o território nacional.                                                                                         Daí a competência do legislador federal para editar normas gerais a respeito do tema.

Cumpre recordar, com a abalizada lição de Alexandre de Moraes, que “o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse (...), à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de predominante interesse regional e aos municípios concernem os assuntos de interesse local” (Direito constitucional, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.270).

Embora o art. 30, inciso I, da Constituição Federal confira ao legislador Municipal competência para “legislar sobre assuntos de interesse local”, a hipótese em exame não se reveste de simples interesse local. Mutatis mutandis, ilustra a questão o seguinte precedente do Pretório Excelso:

“A competência dos Estados para legislar sobre a proteção e defesa da saúde é concorrente à União e, nesse âmbito, a União deve limitar-se a editar normas gerais, conforme o artigo 24, XII, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal (...)." (ADI 1.278, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 16-5-07, DJ de 1º-6-07).

A Constituição Federal prevê também, no art. 170, caput, e respectivo inciso IV, como princípios gerais da atividade econômica, entre outros a livre iniciativa e a livre concorrência. Tais princípios também são aplicáveis aos Estados e Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

A legislação jundiaiense, ao proibir a utilização de cães na prestação de serviços de vigilância, regulou indevidamente atividade comercial. Se o município tem autonomia para disciplina da polícia do comércio, não pode exercê-la para além dos limites daquilo que consubstancie a predominância do interesse local. Neste sentido já se decidiu que:

“(...) 2. A competência constitucional dos Municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados. (...)” (RT 851/128).

 

A referida legislação padece de inconstitucionalidade, também, por violar o art. 111 da Constituição Estadual, eis que o valor da multa fixado, por ser devera excessivo, mostra-se desproporcional, não sendo razoável, também, que o valor dobre progressivamente em caso de reincidência.   

Por fim, inadmissível suscitar, entretanto, ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual.

A lei não cria encargos financeiros novos para sua execução pelo Poder Executivo.

Ademais, a discussão sobre a geração de despesa pública, sedimentada no argumento de ações estatais para fiscalização e execução da lei, extravasa o âmbito estreito do contencioso abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade pela introdução de matéria de fato e dependente de prova.

         Diante do exposto, aguarda-se seja a presente ação julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 7.979, de 17 de dezembro de 2012, do Município de Jundiaí.

 

                            São Paulo, 10 de junho de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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