Parecer
Processo nº 0056125-37.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Registro
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Registro
1) Ação direta de inconstitucionalidade.
Emendas ns. 30/2011 e 32/2011, que, respectivamente deram nova redação ao § 2º
do art. 64 e ao inciso XVII, do art. 39, ambos da Lei Orgânica do Município de
Registro.
2) Emenda nº 30/2011 acrescentou dispositivos
que permite que o prefeito delegue a outra autoridade municipal, por lei de sua
iniciativa, poderes para representar o município nas relações jurídicas,
políticas e administrativas que lhes são inerentes. Emenda nº 32/2011
acrescentou dispositivo que determina competir privativamente e exclusivamente
à Câmara Municipal dar denominação a próprios, vias e logradouros públicos.
3) Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa
parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder
Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, §
1º; art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).
4) Parecer pela procedência do pedido.
Colendo Órgão Especial:
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade tendo como alvo as Emendas nº 30/2011 e nº 32/2011, que respectivamente deram nova redação ao § 2º do art. 64 e ao inciso XVII, do art. 39, ambos da Lei Orgânica do Município de Registro.
Sustenta o autor que as atividades de representar o município nas relações jurídicas políticas e administrativas, bem como a denominação a próprios, vias e logradouros públicos é de competência exclusiva do chefe do Executivo, razão pela qual o ato normativo impugnado seria inconstitucional por conter vício de iniciativa e violar os princípios da tripartição dos poderes.
Aponta, assim, contrariedade aos art. 5º, 47, XIV, 111 e 144 da Constituição Estadual.
Deferida a liminar (fls. 98/99), a douta Procuradoria Geral do Estado não manifestou interesse na defesa do ato (fls. 56/57) e as informações foram prestadas (fls. 112/115).
É o relatório.
O pedido deve ser julgado procedente.
Os dispositivos impugnados, com a redação dada pelas Emendas nº 30/2011 e nº 32/2011, apresentam, respectivamente, a seguinte redação:
“Art. 64 – Ao Prefeito compete entre
outras atribuições:
(...)
§ 2º - O Prefeito poderá delegar à outra autoridade municipal, por lei de
sua iniciativa, poderes para representar o município nas relações jurídicas,
políticas e administrativas que lhe são inerentes.” (g.n.)
“Art. 39- Compete, privativa e
exclusivamente, à Câmara Municipal:
(...)
XVII- Dar denominação a próprios, vias e logradouros públicos”. (g.n.)
No que diz respeito à nova redação do § 2º do art. 64, dada pela Emenda nº 30/2011, insta observar que as atividades de representar o município nas relações jurídicas políticas e administrativa é de competência exclusiva do chefe do Poder Executivo (art. 47, I da Constituição Estadual), sendo vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições (art. 5º, § 1º da Constituição Estadual) .
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, § 1º; art. 47, I e
art. 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.
De
outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
O diploma
impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder
Executivo, pois envolve a direção, a organização e a execução de atos de
governo. A atuação legislativa impugnada equivale à prática de ato de execução
e representação, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos
poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
Em realidade, a administração da cidade incumbe ao que, modernamente, atribui-se a denominação de “Governo”, e que tem na lei seu mais relevante instrumento, participando sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos. Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.
Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que:
“A atribuição típica e predominante
da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a
conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não
administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não
executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não
compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos
para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais;
apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa
o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo,
personalizado no prefeito. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa
da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com
caráter regulatório genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os
mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de
administração (...) A interferência de
um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de
suas funções. Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar
funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são
incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2). Assim como não cabe à
Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas
atividades que lhe são próprias. Em sua função normal e predominante sobre as
demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias
de conduta. Esta é sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que
é a de praticar atos concretos de administração. Já dissemos - e convém se
repita - que o Legislativo provê 'in genere', o Executivo 'in specie', a Câmara
edita normas gerais, o prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes.
Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que
pedem provisões administrativas especiais manifestadas em ordens, proibições,
concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos
verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da
Administração e tudo o mais que se traduzir em
atos ou medidas de execução governamental
(...) Leis de iniciativa da
Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei
orgânica municipal não reserva, expressa privativamente, à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § I, c/c 165 da CF, as que se inserem no âmbito da
competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como
chefe do Executivo local, os projetos de leis que disponham sobre a criação,
estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração
Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de
execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou empregos
públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do Município; o
regime jurídico e previdenciário dos servidores municipais, fixação e aumento de
sua remuneração; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento
anual e os créditos suplementares e especiais.
Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à Câmara, na
forma regimental” (Direito Municipal Brasileiro, 16ª ed., São Paulo: 2008, p.
748, Malheiros).
Por outro lado, no que tange à Emenda n. 32/2011, que deu nova redação ao inciso XVII do art. 39 da Lei Orgânica do Município de Registro, não há na Constituição em vigor reserva de iniciativa para denominação de bens públicos em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.
Contudo, é necessário distinguir as seguintes situações: (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, ou alterações na nomenclatura já existente, caso em que a iniciativa é concorrente; (b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Executivo.
No Brasil, como se sabe, o governo municipal é de funções divididas, incumbindo à Câmara as legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. Nesta sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, 8.ª ed., p. 427 e 508).
Em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de atos concretos de administração.
Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes (ob. cit., p. 429). Assim, no exercício de sua função legislativa, a Câmara está autorizada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).
A nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, 2.ª ed., p. 285).
De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível.
Diferente é a finalidade da denominação de próprios, em que não se visa a orientar a população, mas simplesmente homenagear pessoas ou fatos históricos.
Contudo, a despeito de tal distinção, nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente fixados em lei editada para regulamentar essa matéria.
Em suma, a Câmara pode, por meio de lei, compelir o Prefeito a atender tal determinação, sem usurpar sua função. Mas não poderá, como ocorre na hipótese vertente, ter competência privativa e exclusiva para tal.
Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula desenvolvida pelo célebre jusfilósofo Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis, pois a Constituição é clara ao atribuir ao prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (Constituição Estadual, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (Constituição Estadual, art. 47, XIV), ou seja, emitir atos administrativos ou normativos na esfera de sua atribuição exclusiva (também denominada reserva da Administração).
Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).
Nesse contexto, a Emenda nº 32/2011, que deu nova redação ao inciso XVII do art. 39 da Lei Orgânica do Município de Registro, que estabeleceu competir à Câmara Municipal privativamente e exclusivamente a denominação a próprios, vias e logradouros públicos, só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (Constituição Estadual, art. 5.º).
A propósito, ao examinar assunto o insigne Ministro FRANCISCO REZEK deixou registrado que:
“No contexto dos debates que esta matéria provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade imobiliária, ou a visão do poder Executivo como titular do domínio dos bens públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos da Justiça” (STF, Rp 1.117-SP).
Sobre o tema, este egrégio Tribunal de Justiça já decidiu:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente” (ADI 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte Nordi, 20-07-2005).
Opino pela procedência da ação.
São Paulo, 18 de junho de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb