Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0056126-22.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Registro

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Campinas

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1.239, de 10 de abril de 2012, do Município de Registro, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a distribuição gratuita e obrigatória, pelo poder público municipal, de fraldas descartáveis e sondas urinárias para pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas que não possuam recursos para adquiri-las, e dá outras providências”.

2)      Inconstitucionalidade. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). 

3)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 1.239, de 10 de abril de 2012, do Município de Registro, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a distribuição gratuita e obrigatória, pelo poder público municipal, de fraldas descartáveis e sondas urinárias para pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas que não possuam recursos para adquiri-las, e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, criar despesa e impacto financeiro sem a indicação da fonte de recurso e por usurpar a competência do Executivo em evidente afronta ao princípio constitucional de independência e harmonia dos poderes. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 25, 47, XIV, 111 e  144, da Constituição Estadual.

Foi reconhecida, liminarmente, o vício de inconstitucionalidade (fls. 175/176). Em face de tal decisão foram interpostos embargos de declaração (fls. 182/186) para correção de omissão haja vista não ter sido determinada a suspensão da eficácia da lei impugnada.

A omissão foi suprida com a concessão da liminar para suspender, com efeito ex nunc, a vigência e eficácia da Lei Municipal nº 1.239/2012 (fl.188).

Citado regularmente (fl. 194), o Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 196/197).

Devidamente notificado (fl. 191), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 199/200, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 1.239, de 10 de abril de 2012, do Município de Registro, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a distribuição gratuita e obrigatória, pelo poder público municipal, de fraldas descartáveis e sondas urinárias para pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas que não possuam recursos para adquiri-las, e dá outras providências” foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, com a seguinte redação:  

“Art. 1º - Fica o Poder Público Municipal autorizado a distribuir fraldas e sondas urinárias descartáveis, para uso contínuo ou temporário, para pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas que não possuam condições de adquiri-las, nas condições estabelecidas nesta lei.

§ 1º Poderão ser beneficiadas pela presente lei todas as pessoas nas condições de que trata o caput deste artigo desde que sua renda familiar individual não seja superior a 1 (um) salário mínimo.

§ 2º Considera-se, para os efeitos desta lei, como renda familiar individual a totalidade da renda da família dividida pelo número de seus integrantes.

§ 3º Cada beneficiário da presente lei terá direito a tantas fraldas e sondas urinárias descartáveis quanto consideradas necessárias pelo médico responsável, limitado o total a no máximo 90 (noventa) fraldas por mês para cada pessoa.

Art. 2º - As fraldas e as sondas urinárias descartáveis de que trata a presente lei não poderão ser negociadas pelo beneficiário, por sua família ou por seus responsáveis, a qualquer titulo, sendo que a infração desta proibição importará em cancelamento do benefício.

Art. 3º - O pedido para a concessão do benefício será dirigido à Departamento Municipal de Saúde – SMS, órgão responsável pela aplicação do disposto nesta lei, na forma de seu regulamento, e será instruído com os seguintes documentos:

I – cópia de Carteira de Identidade do beneficiário ou de sua Certidão de Nascimento;

II – atestado médico comprovando a existência de deficiência física, mental ou neurológica, de mobilidade reduzida ou a situação de idoso acamado, com esclarecimento sobre a natureza permanente ou transitória desse estado;

III – cópia de comprovante de residência;

IV – receita médica na qual conste o nome do paciente e a indicação da necessidade de uso de fraldas e ou sondas urinárias descartáveis, com especificação do tamanho e da quantidade adequados à situação;

V – compromisso do beneficiário ou de seu responsável de uso das fraldas e ou sondas urinárias descartáveis exclusivamente para os fins estabelecidos nesta lei.

Art. 4º - O Poder Público municipal poderá firmar convênios e parcerias com outras esferas de governo e com empresa e entidades não governamentais para a consecução dos objetivos estabelecidas nesta lei, inclusive para a produção de fraldas e ou sondas urinárias descartáveis de modo mais econômico para sua distribuição gratuita nos termos ora fixados.

Art. 5º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

Art. 6º - O Poder Executivo regulamentará a presente lei, no que couber, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados de sua publicação.

Art. 7º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A disponibilização pelo Município de fraldas e sondas urinárias descartáveis, para uso contínuo ou temporário, instituída pelo ato normativo impugnado em benefício de pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas que não possuam condições de adquiri-las, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da “autorização” da distribuição gratuita de fraldas e sondas urinárias descartáveis a pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas que não possuam condições de adquiri-las, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação de serviços em benefício dos seus servidores. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao instituir serviço municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Cabe ainda ressaltar que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Celebrar convênios ou criar programas em benefícios dos cidadãos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A utilização recorrente de leis autorizativas tem objetivos de cunho nitidamente políticos, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida ao impor ao Município a distribuição gratuita de fraldas e sondas urinárias descartáveis, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e no 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.239, de 10 de abril de 2012, do Município de Registro.

                 São Paulo, 16 de julho de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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