Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0062531-74.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Andradina

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Andradina

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei municipal de iniciativa parlamentar (Lei nº 2.857, de 27 de agosto de 2012, do Município de Andradina). Isenção da taxa de inscrição em competições esportivas promovidas pela Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude. Improcedência da ação. 1) A lei local não versa sobre matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos. 2) Inocorrência de vício de iniciativa legislativa reservada ao chefe do Poder Executivo e, consequentemente, de violação à cláusula de separação dos poderes. 3) Se não se trata de matéria tributária, onde não há reserva de iniciativa, nem por isso se impede ao Poder Legislativo o poder de isentar ou reduzir taxa de inscrição em concurso público.  4) Precedentes do Supremo Tribunal Federal.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida em face da Lei nº 2.857, de 27 de agosto de 2012, do Município de Andradina, de iniciativa parlamentar, que isenta as equipes desportivas de Andradina do pagamento das inscrições nas competições realizadas no município, promovidas pela Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude.

Alega-se violação ao art. 24, § 2º, 1 a 4, da Constituição Estadual, além do art. 61, § 1º, inc. II, “b” da Constituição Federal e art. 40, inc. IV, XII e XX, da Lei Orgânica do Município.

A liminar foi concedida (fls. 35/38).

A Câmara Municipal ofereceu informações quanto ao processo legislativo da norma impugnada (fls. 46/49) e a douta Procuradoria Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 85/86).

Preliminarmente, o parâmetro exclusivo para a fiscalização abstrata de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual, ainda que reproduza ou absorva, obrigatoriamente, preceito da Constituição Federal, não servindo a tal propósito contraste da lei local com demais dispositivos da Constituição Federal, da Lei Orgânica do Município e da Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 125, § 2º, Constituição Federal). Neste sentido:

“as ações diretas de inconstitucionalidade devem ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI 46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).

Em situações similares, de isenção da taxa de inscrição em concurso público prevista em lei estadual de iniciativa parlamentar, o Supremo Tribunal Federal alijou do contexto a assertiva de violação ao princípio da separação de poderes e a consequente reserva de iniciativa legislativa, como se infere dos seguintes arestos cujas ementas são transcritas:

“CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N° 6.663, DE 26 DE ABRIL DE 2001, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. O diploma normativo em causa, que estabelece isenção do pagamento de taxa de concurso público, não versa sobre matéria relativa a servidores públicos (§ 1º do art. 61 da CF/88). Dispõe, isto sim, sobre condição para se chegar à investidura em cargo público, que é um momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor público. Inconstitucionalidade formal não configurada. Noutro giro, não ofende a Carta Magna a utilização do salário mínimo como critério de aferição do nível de pobreza dos aspirantes às carreiras púbicas, para fins de concessão do benefício de que trata a Lei capixaba nº 6.663/01. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (STF, ADI 2.672-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, 22-06-2006, m.v., DJ 10-11-2006, p. 49, LEXSTF vol. 29, n. 338, pp. 21-23).

“CONSTITUCIONAL. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO GRANDE DO NORTE: VESTIBULAR: TAXA DE INSCRIÇÃO: ISENÇÃO. LEI nº 7.983/2001, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. I. - Lei nº 7.983/2001, que isenta do pagamento de taxa de inscrição os candidatos ao exame vestibular da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte: constitucionalidade. II. - ADI julgada improcedente” (STF, ADI 2.643-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 13-08-2003, m.v., DJ 26-09-2003, p. 05, RTJ 191/469).

Realmente, não se trata da disposição de matéria afeta ao regime jurídico dos servidores públicos – como o seria a instituição de vantagem pecuniária ou direito, a forma de provimento do cargo etc. – nem de requisito para o provimento de cargo público, em que não incide a cláusula da reserva de iniciativa legislativa.

Por isso, não procede a alegação de ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes, por invasão da iniciativa para deflagração do processo legislativo.

Também não se verifica ofensa aos arts. 174, I a III, e 176, I, da Constituição Estadual porque não se trata de matéria orçamentária cuja reserva de iniciativa pertence ao chefe do Poder Executivo nem de início de programa ou projeto não previsto no orçamento. Quando muito, a imprevisão obstaria a execução da lei no exercício de sua edição, não nos subsequentes. E nem se arquitete óbice radicado no art. 25 da Constituição Estadual. O preceito normativo veda projetos de lei sem indicação de recursos próprios para fazer face à majoração de despesa pública, não inviabilizando isenções ou reduções tributárias.

Trata-se, outrossim, de matéria tributária, cuja iniciativa legislativa é concorrente e não reservada. Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

O Supremo Tribunal Federal considera que o preceito da Constituição Federal contido no art. 61, § 1º, II, b, não é de observância obrigatória nem simetricamente extensível ao plano constitucional estadual:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 553/2000, DO ESTADO DO AMAPÁ. DESCONTO NO PAGAMENTO ANTECIPADO DO IPVA E PARCELAMENTO DO VALOR DEVIDO. BENEFÍCIOS TRIBUTÁRIOS. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. AUSÊNCIA DE VÍCIO FORMAL. 1. Não ofende o art. 61, § 1º, II, b da Constituição Federal lei oriunda de projeto elaborado na Assembléia Legislativa estadual que trate sobre matéria tributária, uma vez que a aplicação deste dispositivo está circunscrita às iniciativas privativas do Chefe do Poder Executivo Federal na órbita exclusiva dos territórios federais. Precedentes: ADI nº 2.724, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 02.04.04, ADI nº 2.304, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15.12.2000 e ADI nº 2.599-MC, rel. Min. Moreira Alves, DJ 13.12.02 2. A reserva de iniciativa prevista no art. 165, II da Carta Magna, por referir-se a normas concernentes às diretrizes orçamentárias, não se aplica a normas que tratam de direito tributário, como são aquelas que concedem benefícios fiscais. Precedentes: ADI nº 724-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.04.01 e ADI nº 2.659, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 06.02.04. 3. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente” (STF, ADI 2.464-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 11-04-2007, v.u., DJe 24-05-2007).

III. Processo legislativo: matéria tributária: inexistência de reserva de iniciativa do Executivo, sendo impertinente a invocação do art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, que diz respeito exclusivamente aos Territórios Federais” (STF, ADI 3.205-MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, v.u., DJ 17-11-2006, p. 41).

“3. Afasto a alegação de vício formal. Isso porque a Lei n. 8.366 não tem índole orçamentária. O texto normativo impugnado dispõe sobre matéria de caráter tributário, isenções, matéria que, segundo entendimento dessa Corte, é de iniciativa comum ou concorrente; não há, no caso, iniciativa parlamentar reservada ao Chefe do Poder Executivo. Tem-se por superado, nesta Corte, o debate a propósito de vício de iniciativa referente à matéria tributária. Nesse sentido, ADI n. 3.205, Relator o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 17/11/06; ADI n. 2.659, Relator o Ministro NELSON JOBIM, DJ de 06/02/04, entre outros” (STF, ADI 3.809-5-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 14-06-2007, v.u., DJ 14-09-2007, p. 30).

Examina-se, agora, a eventual possibilidade de ofensa ao parágrafo único do art. 159 que se liga ao art. 120 da Constituição Estadual.

         Independente do entendimento sobre a natureza jurídica do pagamento compulsório de determinada quantia como requisito sine qua non para participação de competições esportivas de natureza pública, e sem embargo de anotar a índole contratual da tarifa (preço público) que consiste na contraprestação pecuniária de usuário pela fruição divisível e específica de serviço público comercial ou industrial prestado pelo poder público, através de suas empresas estatais ou seus delegados, curial frisar a inexistência de afronta aos dispositivos constitucionais invocados porque o poder de isentar não pode ser confundido com a capacidade de fixar tarifas. A isenção de tarifas só pode ser concedida por lei, como explica Hely Lopes Meirelles (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 8ª ed., p. 147), enquanto a fixação de preços ou tarifas integra o rol de atribuições tipicamente administrativas do Executivo.

 

         De outra parte, não há na Constituição Paulista em vigor nenhum dispositivo expresso que atribua a exclusividade de iniciativa das leis isentivas ao Executivo. Como se sabe, a iniciativa reservada constitui exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente e, consoante lição básica de hermenêutica da pena de Carlos Maximiliano, “interpretam-se estritamente os dispositivos que instituem exceções às regras gerais firmadas pela Constituição” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 16ª ed., p. 313). Perfilhando esta vetusta lição, o Supremo Tribunal Federal estratificou o entendimento enunciando que:

“A Constituição de 1988 admite a iniciativa parlamentar na instauração do processo legislativo em tema de direito tributário. - A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que - por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo - deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. - O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara - especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo - ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-05-1992, m.v., DJ 27-04-2001, p. 56).

Face ao exposto, opino pela improcedência da ação.

São Paulo, 13 de junho de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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