Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo n. 0062533-44.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Andradina
Requerida: Câmara Municipal de Andradina
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Parâmetro de controle da constitucionalidade de lei municipal. Limites da cognição. Lei n. 2.892, de 30 de novembro de 2012, do Município de Andradina. Instituição da política municipal de apoio ao cooperativismo. Iniciativa Parlamentar. Separação de poderes. Iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo. Procedência da ação. 1. No contencioso de constitucionalidade não merece cognição alegação de incompatibilidade da lei impugnada com a Lei Orgânica Municipal e a Lei de Responsabilidade Fiscal, sem prejuízo do exame de incompatibilidade a norma de observância obrigatória da CF/88 (art. 125, § 2º, CF/88). 2. Lei, de iniciativa parlamentar, que estabelece política pública com atribuições ao Poder Executivo, viola a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo (arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II e XIV, CE/89). 3. Procedência da ação.
Egrégio Tribunal:
1. Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Andradina
impugnando a Lei n. 2.892, de 30 de novembro de 2012, do Município de
Andradina, de iniciativa parlamentar, que institui a política municipal de
apoio ao cooperativismo, sob alegação de incompatibilidade com a Lei Orgânica
do Município, o art. 61, § 1º, II, b, da Constituição Federal, e a Lei de
Responsabilidade Fiscal (fls. 02/08).
2. Regularizada a petição inicial
(fl. 37), foi concedida a liminar (fls. 42/43).
3. A Câmara Municipal de Andradina
prestou informações (fls. 51/54) e a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou
da defesa da norma impugnada (fls. 91/92).
4. É o relatório.
5.
A petição inicial, embora
aponte vício de iniciativa a macular a lei impugnada, faz remissões em sua
fundamentação à “iniciativa para disciplinar os proventos de seus servidores”
(fl. 04), absolutamente inadequada para o caso.
6.
E passa ao largo do art.
125, § 2º, da Constituição da República, que elege a Constituição Estadual como
exclusivo parâmetro no contencioso de constitucionalidade de lei municipal, ao
concluir pela afronta à Lei Orgânica do Município e à Constituição Federal (fl.
08).
7.
A eventual colisão da lei local com o direito infraconstitucional (dispositivos
da Lei Orgânica do Município e da Lei de Responsabilidade Fiscal) não merece
cognição por ser insuscetível nesta via. O contencioso de
constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo
parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da
Constituição Federal (art. 125, § 2º, Constituição Federal).
8. Destarte, qualquer alegação de incompatibilidade com a Lei Orgânica Municipal ou
leis infraconstitucionais não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para
aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª
Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).
9. Feito
esse registro imprescindível, afigura-se possível a sindicância da
constitucionalidade da lei tomando como base a alegação de vício de iniciativa.
10. A
lei local, de iniciativa parlamentar, instituindo política pública de apoio ao
cooperativismo, inscrevendo atribuições ao Poder Executivo nos arts. 3º a 6º.
11. Em se tratando de processo
legislativo, as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por
simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido:
“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).
“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).
“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).
“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).
12.
Regra é a iniciativa
legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva
a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se
presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de
iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando
que:
“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
13. Fixadas
estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes,
entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser
interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do
processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus
membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).
“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).
“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).
14. Com efeito, postulado básico da
organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art.
5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos
Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.
15. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito
assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a
órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências
indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem
sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:
“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
16. Como consequência
do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as
diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias,
insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas
atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a
sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de
poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
17. Também por decorrência
do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de
controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a
Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no
processo legislativo. Como observa a doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).
(...)
A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
18. Assim, se em
princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas
matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e,
concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes
estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo (arts. 24,
§ 2º, 2, 47, II e XIX, a).
19. Esse desenho
normativo de status constitucional –
aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual -
permite assentar as seguintes conclusões: (a) a iniciativa legislativa não é
ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição
entregou uma determinada competência; (b) ao Chefe do Poder Executivo a
Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à
Administração Pública; (c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à
dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do
estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo (reserva da
Administração). A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da
iniciativa legislativa:
“Leis de
iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que
a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da
competência municipal” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
20.
Ao Chefe do Poder Executivo é
reservada a deflagração do processo legislativo para criação e extinção de
órgãos públicos e fixação de suas competências (art. 24, § 2º, 2, Constituição
Estadual), além de situar na sua esfera privativa a prática de atos ordinários
de Administração e a sua direção superior (art. 47, II e XIV, Constituição
Estadual).
21. Esses
preceitos, decorrentes do art. 5º da Constituição do Estado, foram violados,
não sendo incidente o art. 61, § 1º, II, b,
da Constituição da República, por ser norma específica destinada exclusivamente
à organização administrativa, serviços públicos e matéria tributária e
orçamentária dos Territórios, como já decidido:
“(...) a reserva de lei de iniciativa do chefe do Executivo, prevista no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, somente se aplica aos Territórios federais (...)” (STF, ADI 2.447-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 04-03-2009, v.u., DJe 04-12-2009).
22. Opino
pela procedência da ação pela incompatibilidade da Lei n. 2.892, de 30 de
novembro de 2012, com os arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II e XIV, da Constituição
Estadual.
São Paulo, 31 de julho de
2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj