Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo n. 0062534-29.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Andradina
Requerida: Câmara Municipal de Andradina
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Parâmetro de controle da constitucionalidade de lei municipal. Limites da cognição. Lei n. 2.891, de 30 de novembro de 2012, do Município de Andradina. Concessão de bolsas de estudos gratuitas e integrais a deficientes inscritos em cursos técnicos profissionalizantes ou de graduação. Iniciativa Parlamentar. Separação de poderes. Iniciativa legislativa comum ou concorrente. Improcedência da ação. 1. No contencioso de constitucionalidade não merece cognição alegação de incompatibilidade da lei impugnada com a Lei Orgânica Municipal e a Lei de Responsabilidade Fiscal, sem prejuízo do exame de incompatibilidade a norma de observância obrigatória da CF/88 (art. 125, § 2º, CF/88). 2. Lei, de iniciativa parlamentar, que prescreve em traços abstratos e genéricos fomento social pela concessão gratuita e integral de bolsas de estudo a deficientes inscritos em cursos técnicos profissionalizantes ou de graduação. 3. Iniciativa legislativa comum ou concorrente por merecer interpretação restritiva a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. 4. O art. 61, § 1º, II, b, CF/88, é restrito aos Territórios. 5. Inconsistência de violação ao art. 25, CE/89: impedimento apenas de execução da lei no exercício financeiro respectivo. 6. Improcedência da ação.
Egrégio Tribunal:
1. Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Andradina
impugnando a Lei n. 2.891, de 30 de novembro de 2012, do Município de
Andradina, de iniciativa parlamentar, que concede bolsas de estudos a
deficientes inscritos em cursos técnicos profissionalizantes ou de graduação,
sob alegação de incompatibilidade com o art. 40 da Lei Orgânica do Município, o
art. 24 da Constituição Estadual e o art. 61, § 1º, II, b, da Constituição Federal,
e a Lei de Responsabilidade Fiscal (fls. 02/08).
2. Regularizada a petição inicial
(fl. 34), foi concedida a liminar (fls. 39/41).
3. A Câmara Municipal de Andradina
prestou informações (fls. 48/52) e a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou
da defesa da norma impugnada (fls. 96/98).
4. É o relatório.
5.
A petição inicial, embora
aponte vício de iniciativa a macular a lei impugnada, faz remissões em sua
fundamentação à “iniciativa para disciplinar os proventos de seus servidores”
(fl. 04), absolutamente inadequada para o caso.
6.
E passa ao largo do art.
125, § 2º, da Constituição da República, que elege a Constituição Estadual como
exclusivo parâmetro no contencioso de constitucionalidade de lei municipal, ao
concluir pela afronta à Lei Orgânica do Município e à Constituição Federal (fl.
07), mercê de, antes, invocar o art. 24 da Constituição do Estado (fl. 04).
7.
A eventual colisão da lei local com o direito infraconstitucional (dispositivos
da Lei Orgânica do Município e da Lei de Responsabilidade Fiscal) não merece
cognição por ser insuscetível nesta via. O contencioso de
constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo
parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da
Constituição Federal (art. 125, § 2º, Constituição Federal).
8. Destarte, qualquer alegação de incompatibilidade com a Lei Orgânica Municipal ou
leis infraconstitucionais não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para
aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª
Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).
9. Feito
esse registro imprescindível, afigura-se possível a sindicância da
constitucionalidade da lei tomando como base a alegação de vício de iniciativa
que, todavia, não se sustenta.
10. A
lei local, de iniciativa parlamentar, dispõe sobre fomento social pela
concessão de benefício administrativo a categoria de pessoas em situação de
vulnerabilidade sócio-econômica.
11. Em se tratando de processo
legislativo, as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por
simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido:
“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).
“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).
“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).
“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).
12.
Regra é a iniciativa
legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva
a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se
presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de
iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando
que:
“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
13. Fixadas
estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes,
entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser
interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do
processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus
membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).
“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).
“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).
14. Com efeito, postulado básico da
organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art.
5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos
Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.
15. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito
assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a
órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando
interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas
atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:
“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
16. Como consequência
do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as
diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias,
insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas
atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a
sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
17. Também por
decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos
mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções,
a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no
processo legislativo. Como observa a doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).
(...)
A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
18. Assim, se em
princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas
matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e,
concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes
estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo (arts. 24,
§ 2º, 2, 47, II e XIX, a).
19. Esse desenho normativo
de status constitucional – aplicável
aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar
as seguintes conclusões: (a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só
podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada
competência; (b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve
iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública;
(c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio
da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de
reserva de norma do Poder Executivo (reserva da Administração). A propósito,
frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:
“Leis de
iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que
a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da
competência municipal” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
20.
Assentadas estas premissas,
não se verifica na lei contestada traço de invasão da esfera de iniciativa
legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo ou do domínio da denominada
reserva da Administração.
21.
Se é certo que ao Chefe do
Poder Executivo consente-se a deflagração do processo legislativo para criação
e extinção de órgãos públicos e fixação de suas competências (art. 24, § 2º, 2,
Constituição Estadual), não se verifica no objeto da lei objurgada a disciplina
dessa matéria e, tampouco, da organização e funcionamento de órgãos públicos,
da prática de atos da Administração ou de sua direção superior (art. 47, II,
XIV e XIX, a, Constituição Estadual).
22.
A lei prescreve em traços
abstratos e genéricos a concessão de benefício administrativo no domínio do
fomento social.
23. O
objeto da lei municipal objurgada não se insere em qualquer das matérias
arroladas taxativamente no art. 24, § 2º, da Constituição Estadual - que não
reproduz o quanto contido no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição da República.
24. Aliás,
é impossível invocar-se como parâmetro o art. 61, § 1º, II, b, da Constituição da República, por ser
norma específica destinada exclusivamente à organização administrativa,
serviços públicos e matéria tributária e orçamentária dos Territórios. Neste
sentido, pronuncia o Supremo Tribunal Federal que:
“(...) a reserva de lei de iniciativa do chefe do Executivo, prevista no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, somente se aplica aos Territórios federais (...)” (STF, ADI 2.447-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 04-03-2009, v.u., DJe 04-12-2009).
25. Nem se alegue, por oportuno, violação ao art. 25 da Constituição Estadual, pois, “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01). Neste sentido:
“ Vale registrar, ainda, quanto à discussão sobre a necessidade de previsão orçamentária, a seguinte passagem do voto da eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, proferido por ocasião do julgamento plenário da ADI 3.768/DF, de que ela própria foi Relatora:
‘A constitucionalidade da garantia não ficará comprometida, em qualquer caso, pois o idoso tem, estampado na Constituição, o direito ao transporte coletivo urbano gratuito. Quem assume o ônus financeiro não é questão que se resolve pela inconstitucionalidade da norma que repete o quanto constitucionalmente garantido.’ (grifei)
Cumpre ressaltar, por relevante, que esse entendimento foi reafirmado no julgamento proferido no âmbito desta Corte a propósito de questão similar à que ora se examina nesta sede recursal (RE 573.040/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI)” (STF, RE 702.848-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 29-04-2013, DJe 14-05-2013).
26.
É que diferentemente do
ordenamento constitucional anterior, “não havendo mais a expressa disposição no
texto constitucional de que é iniciativa privativa do Presidente da República
as leis que disponham sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste,
não sendo cabível interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende
inclusive nossa Suprema Corte”, como assinala José Maurício Conti ao comentar a
inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou aumentam despesa
pública (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury
Scaff).
27. Opino
pela improcedência da ação.
São
Paulo, 30 de julho de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj