Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0062537-81.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Andradina

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Andradina

 

 

 

Ementa:

 

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2.860, de 03 de setembro de 2012, do Município de Andradina, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da disponibilização de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo, com alto contraste e seleção de cores, e dá outras providências”. Inconstitucionalidade parcial.

2)      Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

3)     Obrigatoriedade imposta a bibliotecas públicas e instituições de ensino público. Violação dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista. Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura da adequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão (art. 25 da Constituição Estadual).

4)     Obrigatoriedade imposta aos cartórios. Competência privativa do Poder Judiciário para dispor sobre organização dos serviços notariais e de registro (arts. 69, II, “b”; 77 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo)

5)     Obrigatoriedade imposta a instituições privadas. Inexistência de violação de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, ou mesmo do princípio da separação de poderes. Interpretação estrita da regra de reserva de iniciativa legislativa do Poder Executivo. Precedentes do STF. Norma que não estabelece diretamente nenhum encargo para a Administração Pública como criação de cargos, aumento de despesas, alteração de regime jurídico de servidores, ou mesmo, modificação de rotina de serviços.

6)     Parecer pela procedência parcial.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 2.860, de 03 de setembro de 2012, do Município de Andradina, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da disponibilização de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo, com alto contraste e seleção de cores, e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa e por ser ofensiva à lei de responsabilidade fiscal.

Regularizada a representação processual (fls. 48/49), foi deferida a liminar para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado (fls. 54/55).

Citado regularmente (fl. 64), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 66/67).

Devidamente notificado (fl. 61), o Presidente da Câmara Municipal deixou de apresentar informações.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

DA CAUSA DE PEDIR ABERTA

Inicialmente, oportuno consignar que a ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

A causa de pedir consiste na violação à Constituição Estadual, razão pela qual tem sido denominada como causa de pedir aberta, possibilitando no controle concentrado de constitucionalidade o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que, no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

 “(...)

 Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

 (...)”

 Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei nº 2.860, de 03 de setembro de 2012, do Município de Andradina, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da disponibilização de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo, com alto contraste e seleção de cores, e dá outras providências”, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, com a seguinte redação:  

“Art. 1º - Os estabelecimentos abaixo relacionados ficam obrigados a disponibilizar 01 (uma) lupa eletrônica ou ampliador de vídeo, com alto contraste e seleção de cores:

I – cartórios;

II- agências bancárias;

III - agências de financiamento;

IV- Lojas de venda de plano de saúde;

V- Lojas de venda de consórcios;

VI - Bibliotecas públicas e privadas;

VII - Instituições de ensino fundamental, médio, pré-vestibular e superior.

Parágrafo único. O equipamento será disponibilizado, obrigatoriamente, em local de fácil acesso aos seus usuários.

Art. 2º O descumprimento desta lei sujeita o infrator às seguintes penalidades:

I – advertência;

II – multa de 10 (dez) salários mínimos, se reincidente;

III – interdição do estabelecimento.

Art. 3º Os estabelecimentos terão o prazo de 90 (noventa) dias para se adequarem a presente lei, após a publicação da mesma.

Art. 4º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”

DAS VIOLAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Da alegação de violação da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei Orgânica Municipal

 Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e da Lei Orgânica Municipal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal, de que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se à análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

DA INCONSTITUCIONALIDADE DA OBRIGAÇÃO IMPOSTA A BIBLIOTECAS E INSTITUIÇÕES DE ENSINO PÚBLICAS

O art. 1º, VI e VII, da Lei nº 2.860/2012, de Andradina, de iniciativa parlamentar, que impõe a obrigatoriedade da disponibilização de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo às bibliotecas e instituições de ensino públicas, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município ou do Estado, na hipótese de se tratar de instituição estadual, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Governador do Estado ou ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Estaduais ou Municipais.

A disponibilização, pelas bibliotecas ou instituições de ensino públicas, de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo, instituída pelo dispositivo legal mencionado em benefício de pessoas com deficiência visual, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da obrigatoriedade de disponibilidade de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo aos usuários, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação e regulamentação dos serviços em benefício dos cidadãos. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao instituir condições da prestação de serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

         De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte do Município ou do Estado, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida ao impor ao Município ou Estado a disponibilização de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo, com alto contraste e seleção de cores, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade dos incisos VI e VII (quando se trate de instituições de ensino públicas) do art. 1º da Lei nº 2.860/2012, de Andradina, transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

DA INCONSTITUCIONALIDADE DA OBRIGAÇÃO IMPOSTA AOS CARTÓRIOS

Padece ainda de inconstitucionalidade o art. 1º, I da Lei nº 2.860/2012, de Andradina, de iniciativa parlamentar, que impõe a obrigatoriedade da disponibilização de lupa eletrônica ou ampliador de vídeo aos cartórios.

O dispositivo legal mencionado afronta a prescrição constitucional de que compete ao Poder Judiciário iniciativa de lei a respeito de serventias judiciais e extrajudiciais (art. 69, II, b, da CE).

Ao legislar acerca de matéria de competência do Tribunal de Justiça (art. 69, II, b, e 77 da CE), violou-se o princípio da reserva legislativa.

É cediço que os tabelionatos e registros são serviços auxiliares da justiça e, assim sendo, cabe ao Poder Judiciário privativamente disciplinar os serviços, fiscalizar e aplicar sanções aos notários, oficiais e prepostos.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estados e Município. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

DA CONSTITUCIONALIDADE DA OBRIGAÇÃO IMPOSTA A INSTITUIÇÕES PRIVADAS

No que se refere à obrigação imposta às agências bancárias, agências de financiamento, lojas de venda de plano de saúde, lojas de venda de consórcios, bibliotecas privadas; instituições privadas de ensino fundamental, médio, pré-vestibular e superior, a lei não tratou de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo, e tampouco houve violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.

A matéria sujeita à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo, por ser direito estrito, deve ser interpretada restritivamente. Nesse sentido é o entendimento pacífico do Colendo STF, ao interpretar o art. 61, § 1º, da CR/88, como se infere dos precedentes a seguir:

“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no art. 61 da Constituição do Brasil – matérias relativas ao funcionamento da administração pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. (ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 2-4-2007, Plenário, DJE de 15-8-2008.)

(...)

iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. (...) (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001, g.n.)

(...)”

No mesmo sentido os seguintes julgados: ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-2006, Plenário, DJ de 17-11-2006; RE 328.896, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 9-10-2009, DJE de 5-11-2009; ADI 2.392-MC, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 28-3-2001, Plenário, DJ de 1º-8-2003; ADI 2.474, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 19-3-2003, Plenário, DJ de 25-4-2003; ADI 2.638, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 9-6-2006.

As matérias em que há iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, em conformidade com a Constituição do Estado de São Paulo, são indicadas taxativamente: (a) criação e extinção de cargos e funções na administração direta ou indireta autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração; (b) criação de órgãos públicos; (c) organização da Procuradoria-Geral do Estado e da Defensoria Pública; (d) servidores públicos e seu regime jurídico; (e) regime jurídico dos servidores militares; (e) criação, alteração e supressão de cartórios.

Isso decorre do art. 24, § 2º, ns. 1, 2, 3, 4, 5, 6, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da própria Carta Estadual (configurando reprodução das diretrizes contidas no art. 61, § 1º, da CR/88).

A leitura da lei impugnada permite ver claramente que ela não trata de nenhum desses assuntos.

Não há, nas hipóteses apontadas, qualquer vestígio nem mesmo tênue de desrespeito ao princípio da separação de poderes, estabelecido no art. 5º da Constituição do Estado (que reproduz o art. 2º da CR/88).

Seria possível afirmar a ocorrência de quebra da separação de poderes, caso a lei interferisse diretamente na gestão administrativa.

Há interferência direta do legislador na atividade do administrador, como tem reiteradamente reconhecido esse Colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, em casos de leis de iniciativa parlamentar que, por exemplo: (a) criam programas de governo a serem seguidos pelo Poder Executivo; (b) impõem ou vedam a prática de atos administrativos (contratos, permissões, concessões, autorizações, etc.); (c) concedem nomes a prédios públicos, praças ou vias públicas; (d) impõem a inserção de informações em comunicados enviados aos munícipes relativos ao lançamento de impostos; (e) criam sistemas de controle orçamentário, com imposição de envio periódico de informações do Executivo ao Legislativo, sem que haja correspondência com o modelo previsto na Constituição da República e aplicável por força do princípio constitucional da simetria; entre outros.

Em síntese: só é possível identificar a ocorrência da quebra do princípio da separação de poderes quando da lei resulta interferência direta por parte do legislador na atividade do administrador.

Não é isso o que se verifica no caso em exame.

O art. 1°, II, III, IV, V, VI (bibliotecas privadas) e VII (instituições de ensino privadas) da Lei nº 2.860/2012, de Andradina, estabelece a obrigatoriedade a empresas e instituições privadas de disponibilizar lupa eletrônica ou ampliador de vídeo.

Não decorre da lei qualquer imposição de atuação administrativa que não seja aquela decorrente de seu ordinário poder de polícia.

A lei impugnada não coacta a atuação administrativa. Ao contrário, disciplina aspecto da prestação de serviço pelos estabelecimentos mencionados no interesse de pessoas portadoras de deficiência visual.

A obrigação imposta atende ao interesse público, pois se trata de medida que tutela tanto o consumidor quanto os usuários portadores de determinada deficiência visual.

Trata-se de iniciativa exercida dentro do escopo de aprimorar as condições de prestação de serviços aos munícipes. Esse aprimoramento das condições de atendimento por parte das agências bancárias, agências de financiamento, lojas de venda de plano de saúde, lojas de venda de consórcios, bibliotecas privadas e instituições privadas de ensino fundamental, médio, pré-vestibular e superior revela interesse local. Pode, portanto, ser objeto de lei municipal cuja iniciativa não é exclusiva do Poder Executivo.

Inúmeros são os precedentes desse C. Órgão Especial acerca da constitucionalidade de leis municipais que criam obrigação a particular. Basta conferir as seguintes ementas:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei 4.682, de 26 de agosto de 2011 do Município de Mogi Guaçu. Possibilidade do Município de legislar sobre instalações de painel opaco entre os caixas e os clientes e câmeras de vídeo no entorno dos estabelecimentos bancários do Município. Constitucionalidade reconhecida. Não ocorrência de vício de iniciativa do projeto de lei por Vereador. Norma editada que não estabelece medidas relacionadas à organização da administração pública, nem cria deveres diversos daqueles genéricos ou mesmo despesas extraordinárias. Imposição de sanções em caso de descumprimento pelos estabelecimentos bancários que decorrem de descumprimento de norma de conduta. Irrelevância. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. O Município pode legislar sobre instalações de painel opaco entre os caixas e os clientes e câmeras de segurança no entorno dos estabelecimentos bancários, em favor dos usuários dos serviços, para lhes proporcionar segurança, na esteira, aliás, de precedentes do próprio Supremo Tribunal Federai A iniciativa do projeto de lei por Vereador em matéria dessa natureza não interfere na organização da Administração, mostrando-se irrelevante que o Executivo, na hipótese, tenha dever de fiscalizar ou impor, em sendo o caso, as sanções correspondentes às infrações. Ao Legislativo cabe editar normas abstratas, gerais e obrigatórias, ainda que voltadas apenas aos bancos e ao Executivo cabe a responsabilidade de executá-las, inclusive com fiscalização e imposição de penas.” (ADIN 0276050-06.2011.8.26.0000, Rel. Des. Kioitsi Chicuta, julgamento em 13-06-2012)

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei Municipal n° 4.384/2009. Ato normativo de iniciativa de vereador, que dispõe sobre a obrigatoriedade de atendimento reservado, bem com vídeo de monitoramento nas agências bancárias no âmbito do Município e outras providências - Ausência de vício de iniciativa - Legalidade por se tratar de matéria ligada à segurança pública - Matéria de iniciativa não reservada ao Chefe do Poder Executivo - Inexistência de ilegalidade do Município na exigência de funcionamento de estabelecimentos bancários condicionado à instalação de equipamentos de segurança - Competência legislativa concomitante do Município - Matéria de interesse loca) - Efetiva legitimidade do Município para legislar sobre o tema - Finalidade de proporcionar proteção ao consumidor - Ação julgada improcedente.” (ADIN 0318796-20.2010.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, julgamento em 29-02.2012)

A matéria é pacífica no âmbito do Colendo STF. Confira-se: RE 312.050, rel. Min. Celso de Mello, DJ 06.05.05; RE 208.383, rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 07.06.99.

O simples fato da previsão de que o Executivo regulamentará a Lei não caracteriza invasão de área da esfera de competência ou interferência direta por parte do legislador na atividade do administrador.

A lei poderá ou não ser regulamentada pelo Executivo. Da mesma forma é facultativa a exigência do monitoramento por imagens.

Se eventualmente para cumpri-la, será ou não necessária criação de novos cargos de fiscalização, ou mesmo se será ou não necessária atividade suplementar de servidores, e se isso provocará ou não maiores gastos por parte do Poder Público, é algo que dependerá essencialmente da opção político-administrativa, calcada na esfera da conveniência e oportunidade, a cargo do Chefe do Poder Executivo Municipal. E essa avaliação e decisão ocorrerão no âmbito administrativo, não decorrendo diretamente da lei impugnada.

Em suma, neste ponto, a lei impugnada não cria diretamente cargos, órgãos, ou encargos para a administração pública, nem regula diretamente a prestação de serviços pelo Poder Público, e tampouco gera diretamente qualquer despesa para a Administração Pública.

Entendimento diverso implicaria contrariedade à correta compreensão a respeito do princípio da separação de poderes, previsto no art. 2º da CR/88, bem como às hipóteses de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Executivo, previstas no art. 61, § 1º, da CR/88, sendo necessário que esse Colendo Tribunal se manifeste a respeito, inclusive para fins de prequestionamento.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 1º, I; da expressão “públicas” do inciso VI da Lei nº 2.860, de 03 de abril de 2012, do Município de Andradina, dando ao VII do art. 1º interpretação conforme a Constituição para exclusão da sua aplicação às instituições de ensino públicas.

 

              São Paulo, 14 de agosto de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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