Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0062694-54.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Miguelópolis

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Miguelópolis

 

 

Ementa:

1.      Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade do art. 83 da Lei Orgânica do Município de Miguelópolis e dos arts. 93 e 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Miguelópolis.

2.      Previsão de suspensão do Prefeito por infração político-administrativa após a instauração do processo pela Câmara Municipal.

3.      Alegação de ofensa aos princípios federativo e da separação dos poderes.

4.      Previsão de suspensão cautelar do Prefeito. Tema da alçada federal. Ofensa à regra da repartição constitucional de competências associada diretamente ao princípio federativo (art. 1º e art. 18 da CF/88). Princípios de observância obrigatória pelos Estados e Municípios (art. 1º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo).

5.      Parecer pela procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito do Município de Miguelópolis, tendo como alvo o art. 83 da Lei Orgânica do Município de Miguelópolis e os arts. 93 e 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal do mesmo Município.

Alegação de ofensa ao art. 144 da Constituição Estadual, tendo em vista o disposto no art. 22, I, da Constituição Federal.

A Câmara Municipal de Miguelópolis prestou informações (fls. 162/185).

Citado, o Procurador Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 151/152).

É o relato do essencial.

Os dispositivos impugnados apresentam a seguinte redação:

“Lei Orgânica Municipal:

Art. 83 – O Prefeito Municipal ficará suspenso e afastado das suas funções, após a instalação de Comissão Processante pela Câmara Municipal, pelo prazo de 90 (novente) dias.

(...)

Regimento Interno da Câmara Municipal:

Art. 93 – As Comissões Processantes serão constituídas nos termos do Decreto Lei 201/67 e demais legislações aplicáveis, com as seguintes finalidades:

I – Apurar infrações político-administrativas do Prefeito e Vereadores, no desempenho de suas funções e nos termos da fixados na legislação federal;

II – Destituição de membros da mesa, nos termos dos artigos 30 e 36 deste regimento.

Art. 94 – Após a instalação de Comissão Processante pela Câmara Municipal, o Prefeito Municipal ficará afastado do cargo pelo prazo de duração da mesma, ou seja, 90 (novente) dias”.

Como se sabe, é inconstitucional legislação municipal que trate do processo e julgamento do Prefeito Municipal e de Vereador, bem como aquela que venha a tipificar crimes de responsabilidade do Prefeito.

Há, no caso, violação ao disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a ideia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

Para a solução do caso, é necessário ter em mente que tratar do procedimento de responsabilização, por infrações político-administrativas, é atividade que se encontra inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal, por força do art. 22, I da CR/88.

Recorde-se com Alexandre de Moraes, referindo-se aos ilícitos político-administrativos, que há “(...) necessidade de que a tipificação de tais infrações emane de lei federal, eis que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se insere, por seu conteúdo penal, na competência exclusiva da União” (Direito constitucional, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 443).

A questão, inclusive, foi pacificada pelo E. STF, que editou a respeito a Súmula nº 722, do seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento."  

Vários foram os precedentes que justificaram a edição da mencionada súmula, em Sessão Plenária do E. STF, de 26/11/2003 (cf. DJ de 9/12/2003, p. 1; DJ de 10/12/2003, p. 1; DJ de 11/12/2003, p. 1.).  Entre tais julgados, podemos ressaltar os seguintes: ADI 1628 MC, DJ de 26/9/1997, RTJ 166/147; ADI 2050 MC, DJ de 1º/10/1999, RTJ 171/807; ADI 2220 MC, DJ de 7/12/2000, RTJ 176/199; ADI 1879 MC, DJ de 14/5/2001, RTJ 177/712; ADI 2592, DJ de 23/5/2003; ADI 1901, DJ de 9/5/2003.

Em cada um desses precedentes ficou claro o posicionamento da Suprema Corte no sentido de que cabe ao legislador federal tipificar as infrações político-administrativas, e traçar as normas para o respectivo processo e julgamento.

É assente também que as normas federais anteriores à Constituição de 1988 que tratam da matéria foram recepcionadas pela Carta Magna, ao menos na parte em que não são com ela incompatíveis.

Deste modo, a legislação municipal que trata do tema é inconstitucional, devendo seu vício ser reconhecido por esse E. Órgão Especial, em sede de controle concentrado de normas.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput da CR/88 prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Relevante anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

Há leis federais que tratam da tipificação de crimes de responsabilidade praticados por Prefeitos e Vereadores, bem como do respectivo processo e julgamento.

A Lei nº 1079/50, recepcionada pela Constituição da República, define quais são as infrações, e disciplina o processo e julgamento, nos casos de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) cometidos pelo Presidente da República e Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.

O Decreto-lei nº 201/67 define e regula o processo atinente aos crimes de responsabilidade cometidos por Prefeitos Municipais e por Vereadores.

Destarte, ostentam vício de inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo – não observância das regras associadas à repartição constitucional de competências - normas contidas na legislação municipal (Lei Orgânica) que conceituam infrações político-administrativas e regulam o respectivo processo e julgamento.

Apenas como reforço, cumpre colacionar julgado do E. STF que, mutatis mutandis, serve de parâmetro para o caso em exame:

“A expressão ‘e julgar’, que consta do inciso XX do artigo 40, e o inciso II do § 1º do artigo 73 da Constituição catarinense consubstancia normas processuais a serem observadas no julgamento da prática de crimes de responsabilidade. Matéria cuja competência legislativa é da União. Precedentes. Lei federal n. 1.079/50, que disciplina o processamento dos crimes de responsabilidade. Recebimento, pela Constituição vigente, do disposto no artigo 78, que atribui a um Tribunal Especial a competência para julgar o Governador. Precedentes. Inconstitucionalidade formal dos preceitos que dispõem sobre processo e julgamento dos crimes de responsabilidade, matéria de competência legislativa da União. A CB/88 elevou o prazo de inabilitação de 5 (cinco) para 8 (oito) anos em relação às autoridades apontadas. Artigo 2º da Lei n. 1.079 revogado, no que contraria a Constituição do Brasil. A Constituição não cuidou da matéria no que respeita às autoridades estaduais. O disposto no artigo 78 da Lei n. 1.079 permanece hígido — o prazo de inabilitação das autoridades estaduais não foi alterado. O Estado-Membro carece de competência legislativa para majorar o prazo de cinco anos — artigos 22, inciso I, e parágrafo único do artigo 85 da CB/88, que tratam de matéria cuja competência para legislar é da União. O Regimento da Assembléia Legislativa catarinense foi integralmente revogado. Prejuízo da ação no que se refere à impugnação do trecho ‘do qual fará chegar uma via ao substituto constitucional do Governador para que assuma o poder, no dia em que entre em vigor a decisão da Assembléia’, constante do § 4º do artigo 232." (ADI 1.628, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-8-06, DJ de 24-11-06)”.

Saliente-se que a posição aqui sustentada encontra amparo em precedentes desse E. Tribunal de Justiça. É o caso do julgado relatado pelo Exmo Des. Mohamed Amaro (ADIN 106.343-0/8-00, Ilha Solteira, Julgado em 23.06.2004), de cuja ementa pode-se extrair o seguinte excerto:

“Os princípios básicos que regem a responsabilização do Chefe do Executivo por crime de responsabilidade consagram que somente a União – no exercício de sua competência privativa para legislar sobre direito penal e processual – poderá definir as figuras típicas correspondentes a crimes de responsabilidade, bem como suas normas para o respectivo processo e julgamento, restando, pois, afastada qualquer previsão da lei orgânica municipal, regimento interno, ou resolução legislativa, diversa do estabelecido na legislação federal pertinente.

         Aos municípios, apenas cabe observar as normas decorrentes do Decreto-lei 201/67 – que foi recepcionado pela nova ordem constitucional, como, expressamente, admitido pelo Supremo Tribunal Federal.

         O ESTABELECIMENTO DE NORMAS DE PROCESSO E JULGAMENTO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE – PORTANTO, SIGNIFICANDO INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA - É DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO, POR FORÇA DO QUE DIPÕEM OS ARTIGOS 85, PARÁGRAFO ÚNICO, E 22, INCISO I, AMBOS DA CARTA MAGNA.

         Precedentes jurisprudenciais”.

No mesmo sentido o julgamento da ADI nº 153.536-0/8-00, relator Des. Mário Devienne Ferraz, j. 09.04.2008 (v.u.), conforme ementa a seguir transcrita:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda à Lei Orgânica do Município de Tietê nº 2, de 4 de novembro de 2004, que incluiu em seu texto o artigo 61-D, no qual atribui à Câmara Municipal o poder de afastar o Prefeito cuja denúncia por infração político-administrativa for recebida por dois terços de seus membros e quando a denúncia pela prática de crime comum, de responsabilidade ou ato de improbidade administrativa for recebida pelo Poder Judiciário, perdurando o afastamento até final julgamento. Inadmissibilidade. Ofensa ao princípio federativo e ao princípio da competência legislativa. Violação dos artigos 22, I, 24, XI e 29, todos da Constituição Federal, 144 da Carta Política Estadual, e do Decreto-lei nº 201/67. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo impugnado”.

Em síntese, os dispositivos impugnados são verticalmente incompatíveis com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, fundamento este suficiente para o acolhimento da ação proposta pelo Prefeito Municipal de Miguelópolis.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 83 da Lei Orgânica do Município de Miguelópolis e dos arts. 93 e 94 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Miguelópolis.

 

São Paulo, 17 de outubro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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