Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº. 0062696-24.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Miguelópolis
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de
Miguelópolis
Ementa:
1. Constitucional. Administrativo. Ação
direta de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade dos incisos I, II, III e
IV do art. 60, letra “m”, “n”, “o” e “p”, do art. 79 da Lei Orgânica do
Município de Miguelópolis.
2. Separação de poderes. Princípio
Federativo. Não se coaduna com o princípio da separação de poderes a exigência
da obrigatoriedade do envio à Câmara Municipal: a) de balancete financeiro
mensal da Prefeitura Municipal, bem como dos demonstrativos financeiros, até o
dia 30 do mês subsequente; b) boletim diário da tesouraria devidamente
atualizado relativo ao dia anterior, acompanhado da relação nominal dos
pagamentos realizados aos respectivos credores; c) todo dia 30 de cada mês,
cópias de todos os procedimentos licitatórios realizados e seus respectivos
contratos firmados, inclusive os contratos firmados com fornecedores de
produtos ou prestadores de serviços sem procedimentos licitatórios até o limite
legal previsto na Lei n. 8.666/93 e suas alterações; d) toda sexta-feira de
cada semana, cópias de portarias e contratos. Violação dos arts. 5º, 47, II,
XIV e XXX, 144 e 150 da Constituição Estadual.
3. Dispositivos que tipificam infração
político-administrativa. Precedentes do E. STF e do TJSP. Súmula nº 722 do E.
STF. Competência legislativa da União (art. 22, I, Constituição da República).
Princípio federativo (arts. 1º e 18 da Constituição da República e art. 1º da
Constituição Paulista). Manifestação através da repartição constitucional de
competências. Princípio estabelecido de observância obrigatória pelos municípios
(art. 29, caput, da Constituição da República e art. 144 da Constituição
Paulista).
4. Parecer pela procedência da ação.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Desembargador Relator
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito do Município de Miguelópolis, tendo como alvo as os incisos I, II, III e IV do art. 60 e letras “m”, “n”, “o” e “p”, do § 1º do art. 79 da Lei Orgânica do Município, sob o argumento de violação aos arts. 20, VI, 33, I e XIII, 47, IX, 144 e 150, da Constituição Estadual e arts. 22, I e 31, § 2º da Constituição Federal.
A Câmara Municipal de Miguelópolis prestou informações (fls. 211/233).
Citado, o Procurador Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 235/237).
É o relato do essencial.
Os dispositivos impugnados apresentam a seguinte redação:
“Art. 60 – A fiscalização contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial do Município e de todas as entidades da administração
direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade e economicidade, aplicação
de subvenções e renúncia de receitas será exercida pela Câmara Municipal,
mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno de cada poder.
I- enviar a Câmara
Municipal balancete financeiro mensal da Prefeitura Municipal, bem como os
demonstrativos financeiros, até o dia 30 do mês subsequente.
II- enviar para a
Câmara Municipal boletim diário da tesouraria devidamente atualizado relativo
ao dia anterior, acompanhado da relação nominal dos pagamentos realizados aos
respectivos credores.
III- enviar para a
Câmara Municipal todo dia 30 de cada mês, cópias de todos os procedimentos
licitatórios realizados e seus respectivos contratos firmados, inclusive, os
contratos firmados com fornecedores de produtos ou prestadores de serviços sem
procedimentos licitatórios até o limite legal previsto na Lei n. 8.666/93 e
suas alterações.
IV- enviar para a
Câmara Municipal toda sexta feira de cada semana cópias de portarias e
contratos (g.n.).
(...)
Art. 79 – As infrações político-administrativa do Prefeito
serão submetidas ao exame da Câmara Municipal.
§1º - Consideram-se infrações político-administrativas, além
de outras:
(...)
m) não enviar a Câmara
Municipal balancete financeiro mensal da Prefeitura Municipal, bem como os
demonstrativos financeiros, até o dia 30 do mês subsequente.
n) não enviar para a
Câmara Municipal boletim diário da tesouraria devidamente atualizado relativo
ao dia anterior, acompanhado da relação nominal dos pagamentos realizados aos
respectivos credores.
o) não enviar para a
Câmara Municipal todo dia 30 de cada mês, cópias de todos os procedimentos
licitatórios realizados e seus respectivos contratos firmados, inclusive, os
contratos firmados com fornecedores de produtos ou prestadores de serviços sem
procedimentos licitatórios até o limite legal previsto na Lei n. 8.666/93 e
suas alterações.
p) não enviar para a
Câmara Municipal toda sexta feira de cada semana cópias de portarias e
contratos” (g.n.)
Os incisos I, II, III e IV do art. 60 da Lei Orgânica contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos, ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal e do art. 144 da Constituição Estadual:
“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio direto dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
XIX – dispor, mediante decreto, sobre:
organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.
(...)
Art. 150. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Município e de todas as entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, finalidade, motivação, moralidade, publicidade e interesse público, aplicação de subvenções e renúncia de receitas, será exercida pela Câmara Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno de cada Poder, na forma da respectiva lei orgânica, em conformidade com o disposto no art. 31 da Constituição Federal.
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O
legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo
para a Administração Pública local. Abstraindo quanto aos motivos que podem ter
levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do Município.
Referido
diploma, na prática, invadiu a esfera da
gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos
segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e
independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao
governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com
usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir
prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou
retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao
princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c
o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
Esse
E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais
de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo
na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas transcritas a
seguir:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).
Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.
Assim,
se qualquer emenda constitucional tendente a abolir o princípio será
inconstitucional, por ofensa à cláusula pétrea contida no art. 60, § 4º, III,
da Constituição da República, também será verticalmente incompatível com o texto
constitucional ato normativo de menor hierarquia que venha a conflitar com
referido núcleo constitucional imodificável.
Deste
modo, no caso em exame, ao detalhar o sistema de controle da Administração
Direta ou Indireta do município, o legislador instituiu metodologia que importa
verdadeira capitis diminutio para a
Administração, sujeitando-a a restrições inexistentes no paradigma constitucional
federal ou estadual.
Como
anota a propósito Hely Lopes Meirelles, mais uma vez, “(...) é evidente que essa fiscalização externa, realizada pela Câmara,
deve conter-se nos limites do regramento e dos princípios constitucionais, em
especial o da independência e harmonia dos Poderes” (Direito municipal brasileiro, cit., p. 609).
Tanto
a Constituição Federal, como a Estadual, já estabelecem formas de controle
interno e externo, cuja essência deve ser seguida pelo legislador Municipal.
Recorde-se
a propósito que o art. 31, § 1º, da Constituição da República prevê que o controle
externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do
Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver”.
Por
outro lado, o art. 33 da Constituição Paulista prevê que o controle externo será
exercido pela Assembleia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com
várias atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais,
replicam as atribuições do Tribunal de Contas da União, conforme o art. 71 da Constituição
da República.
Por
seu turno, o art. 150 da Carta Paulista reitera a existência de sistemas de
controle interno em cada Poder e externo pela Câmara Municipal, com remissão
expressa ao art. 31 da Constituição da República.
Deste
modo, dentro dos sistemas de controle interno e externo, previstos tanto no
texto da Constituição Federal como na Estadual, não se identifica, nem de modo
distante, metodologia de fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo
legislador municipal nos dispositivos impugnados na presente ação.
A
matéria já foi pacificada pelo E. Supremo Tribunal Federal, como se infere dos
seguintes precedentes que, mutatis
mutandis, são aplicáveis ao caso:
"Os dispositivos impugnados contemplam a possibilidade
de a Assembleia Legislativa capixaba convocar o Presidente do Tribunal de
Justiça para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente
determinado, importando crime de responsabilidade a ausência injustificada
desse Chefe de Poder. Ao fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu o paradigma da
Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do esquema de freios e
contrapesos — cuja aplicabilidade é sempre estrita ou materialmente inelástica
— e maculando o Princípio da Separação de Poderes. Ação julgada
parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão
‘Presidente do Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do art. 57 da
Constituição do Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel. Min. Carlos
Britto, julgamento em 10-8-06, DJ de 2-2-
"Separação e independência dos Poderes: freios e contra-pesos: parâmetros federais impostos ao Estado-Membro. Os mecanismos de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes. Consequente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por dispositivos da Lei estadual 11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34), que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça (...)." (ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-11-98, DJ de 5-11-04)
"A fiscalização legislativa da ação administrativa do
Poder Executivo é um dos contrapesos da Constituição Federal à separação e
independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a
Constituição da República pode legitimar. Do
relevo primacial dos 'pesos e contrapesos' no paradigma de divisão dos poderes,
segue-se que à norma infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a
Constituição dos Estados-Membros —, não é dado criar novas interferências de um
Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou
princípio da Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa
da ação administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de
cada câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembleia
Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é
claro, quando atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão."
(ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-
Esse posicionamento tem, do mesmo modo, sido prestigiado por esse E. Tribunal de Justiça:
“INCONSTITUCIONALIDADE - Ação direta - Inconstitucionalidade do art. 136, da Lei Orgânica do Município de Franca - Ocorrência - Parágrafo que estabelece prazo para a remessa de cópias de decretos e portarias pelo Prefeito aos Vereadores, sob cominação de nulidade - Inadmissibilidade - Limites constitucionais estabelecidos para o controle externo parlamentar ou legislativo sobre atos do Poder Executivo extrapolados - Inconstitucionalidade declarada, comunicada a decisão à Câmara Municipal para a suspensão da execução dessa norma - Art. 90 da Constituição do Estado”. (Relator: Carlos Ortiz - Ação direta de Inconstitucionalidade 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91). (g.n.)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Dispositivo da Lei Orgânica que determina ao Prefeito remeter cópia à Câmara de cada balancete mensal e a publicá-los - Normas que extravasam os limites do controle externo e da fiscalização próprios do Poder Legislativo - Invasão, ademais, de esfera de atuação reservada ao Chefe do Executivo - Desobediência ao princípio da harmonia e independência entre os Poderes - Inconstitucionalidade reconhecida - Ofensa aos artigos 5º, 150 e 170 da Constituição Estadual - Pedido procedente.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.096.538-0 - São Paulo - Órgão Especial - Relator: Viseu Júnior - 12.02.03 - V.U.)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal de Miracatu nº 1.299, de 15.4.2005, que impõe ao Prefeito a obrigação de encaminhar ao legislativo municipal todos os editais de licitações abertas pelo Município para que sejam afixados em local próprio – Inadmissibilidade – Clara violação ao princípio da independência e harmonia entre os poderes, com ofensa explícita aos arts. 5º, 144 e 150 da Constituição do Estado de São Paulo – As atribuições do Prefeito, como administrador do Município, concentram-se em planejamento, organização e direção dos serviços e obras da Municipalidade – Para a execução de tais atividades, o Prefeito dispõe de poderes correlacionados a comando, coordenação e controle de empreendimentos no Município – Se a Câmara Municipal interfere na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local, imobilizando a atuação deste no que concerne aos assuntos de política administrativa, ainda que a pretexto de exercer a função fiscalizadora de controle externo, privativa do Tribunal de Contas, configura-se infração à Carta Estadual – Ação procedente.” (Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 123.145-0/9-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Aloísio de Toledo César – 19.04.06 – M.V.)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 1.674, de 21 de outubro de 2005, do Município de Avanhandava, que “dispõe sobre a instituição de controle externo da qualidade da água distribuída à população de Avanhandava pelo DAAEA” – Lei de iniciativa de Vereador – Promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal – Matéria afeta à Administração Ordinária – Competência reservada ao Poder Executivo – Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes e da iniciativa legislativa – Ação procedente. (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 128.082-0/7-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Denser de Sá – 19.07.06 – V.U.).
“Ementa: Constitucional - Ação direta de
inconstitucionalidade - Lei 10.127/08, do Município de São José do Rio Preto,
de iniciativa e editada pelo Poder Legislativo local, depois de veto - Comando
de remessa obrigatória à Câmara de Vereadores, pelos Conselhos Municipais da
Criança e do Adolescente - CMDCA e de Assistência Social - CMAS, bem como pela
Secretaria Municipal de Assistência Social, de relatório bimestral acerca das
atividades das parcerias subvencionadas pelo Executivo, além de exarar
pareceres a respeito - ingerência do
Legislativo na Administração local - Maltrato ao princípio da independência dos
Poderes - Ofensa aos arts. 5º, caput; 37; 47, II e XV; 111 e 144 da
Constituição do Estado - Precedente - Inconstitucionalidade declarada” (ADI 163.546-0/1-00,
rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008).
Assim, as normas impugnadas na presente ação, nitidamente: (a) violam o necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre o Poder Legislativo e o Executivo; (b) criam sistemática de controle não prevista na nossa ordem constitucional; (c) desrespeitam, dessa forma, o “modelo” traçado pelo constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.
Daí
a violação aos arts. 5º, 144 e 150 da Carta Estadual.
As letras “m”, “n”, “o” e “p” do § 1º do art. 79 da Lei Orgânica do Município de Miguelópolis, por sua vez, padecem de inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo, cuja incidência é admissível nesta via por obra da norma remissiva constante do art. 144 da Constituição Estadual.
O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância, na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).
Observe-se que o não cumprimento dos atos normativos questionados é considerado infração politico-administrativa.
Ora, um dos aspectos de maior relevo, e
que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado
pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados
pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes
federativos, bem como a fixação da autonomia, e dos respectivos limites, dos
Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.
Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4ª ed., São Paulo, Atlas, 2007, p.19/20).
Não pairaria qualquer dúvida a respeito
da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que
sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda,
como visto, proposta de emenda “tendente
a abolir”, entre outros, “a forma
federativa de Estado” (art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição da
República).
A preservação do princípio federativo tem
contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em
julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:
"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).
Por essa linha de raciocínio, pode-se
também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do
legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional
de competências, a violar o princípio federativo.
Para a solução do caso, é necessário ter
em mente que tratar de infrações político-administrativas é atividade que se
encontra inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal,
por força do art. 22, I, da Constituição da República.
Recorde-se com Alexandre de Moraes,
referindo-se aos ilícitos político-administrativos, que há “(...) necessidade de que a tipificação de
tais infrações emane de lei federal, eis que o Supremo Tribunal Federal tem
entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se insere, por
seu conteúdo penal, na competência exclusiva da União” (Direito constitucional, 19ª ed., São
Paulo, Atlas, 2006, p.443).
A questão, inclusive, foi pacificada pelo
E. Supremo Tribunal Federal, que editou, a respeito, a súmula nº 722, que
apresenta o seguinte teor: “São da
competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o
estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento.". Vários
foram os precedentes que justificaram a edição da mencionada súmula, em Sessão
Plenária do E. Supremo Tribunal Federal, de 26/11/2003 (cf. DJ de 9/12/2003, p.
1; DJ de 10/12/2003, p. 1; DJ de 11/12/2003, p. 1.). Entre tais julgados, podemos ressaltar os
seguintes: ADI 1628 MC, DJ de 26/9/1997, RTJ 166/147; ADI 2050 MC, DJ de
1º/10/1999, RTJ 171/807; ADI 2220 MC, DJ de 7/12/2000, RTJ 176/199; ADI 1879
MC, DJ de 14/5/2001, RTJ 177/712; ADI 2592, DJ de 23/5/2003; ADI 1901, DJ de
9/5/2003.
Em cada um desses precedentes ficou claro
o posicionamento da Suprema Corte no sentido de que cabe ao legislador federal
tipificar as infrações político-administrativas e traçar as normas para o
respectivo processo e julgamento.
É assente também que as normas federais
anteriores à Constituição de 1988, que tratam da matéria, foram recepcionadas
pela Carta Magna, ao menos na parte em que não são com ela incompatíveis.
Deste modo, os atos normativos que tratam
de tais temas são inconstitucionais, devendo seu vício ser reconhecido por esse
E. Órgão Especial, em sede de controle concentrado de normas.
A prescrição de que os municípios devem
observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no
art. 144 da Constituição Paulista. A art. 29, caput, da Constituição da República, prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica,
votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois
terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta
Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes
preceitos” (g.n.).
Relevante anotar que quando do julgamento
da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de
Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade de declaração de
inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição
de competências estabelecido pela Constituição Federal. É relevante trazer
excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível
para a elucidação da questão:
“Ora, um dos
princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio
federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios
Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito.’
Sendo a
organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da
República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a
distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a
conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na
Constituição Federal.
Assim, quando o
referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os
princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei
municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a
esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio
federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado”
(trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI
130.227.0/0-00).
Há leis federais que tratam da
tipificação de crimes de responsabilidade praticados por Prefeitos e
Vereadores, bem como do respectivo processo e julgamento.
A Lei nº 1.079/50, recepcionada pela
Constituição da República, define quais são as infrações e disciplina o
processo e julgamento, nos casos de crimes de responsabilidade (infrações
político-administrativas) cometidos pelo Presidente da República e Ministros de
Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República,
Governadores e Secretários de Estado.
De outro lado, como já referido, é o Decreto-lei
nº 201/67 que define e regula o processo atinente aos crimes de
responsabilidade cometidos por Prefeitos Municipais e por Vereadores.
Destarte, ostentam vício de
inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo – não observância
das regras associadas à repartição constitucional de competências - normas
contidas na legislação municipal que conceituam infrações
político-administrativas e regulam o respectivo processo e julgamento.
Apenas como reforço, cumpre colacionar
recente julgado do E. Supremo Tribunal Federal que, mutatis mutandis, serve de parâmetro para o caso em exame:
"A expressão
‘e julgar’, que consta do inciso XX do artigo 40, e o inciso II do § 1º do
artigo 73 da Constituição catarinense consubstancia normas processuais a serem
observadas no julgamento da prática de crimes de responsabilidade. Matéria cuja
competência legislativa é da União. Precedentes. Lei federal n. 1.079/50, que
disciplina o processamento dos crimes de responsabilidade. Recebimento, pela
Constituição vigente, do disposto no artigo 78, que atribui a um Tribunal
Especial a competência para julgar o Governador. Precedentes.
Inconstitucionalidade formal dos preceitos que dispõem sobre processo e
julgamento dos crimes de responsabilidade, matéria de competência legislativa
da União. A CB/88 elevou o prazo de inabilitação de 5 (cinco) para 8 (oito)
anos em relação às autoridades apontadas. Artigo 2º da Lei n. 1.079 revogado,
no que contraria a Constituição do Brasil. A Constituição não cuidou da matéria
no que respeita às autoridades estaduais. O disposto no artigo 78 da Lei n.
1.079 permanece hígido — o prazo de inabilitação das autoridades estaduais não
foi alterado. O Estado-Membro carece de competência legislativa para majorar o
prazo de cinco anos — artigos 22, inciso I, e parágrafo único do artigo 85 da
CB/88, que tratam de matéria cuja competência para legislar é da União. O
Regimento da Assembleia Legislativa catarinense foi integralmente revogado.
Prejuízo da ação no que se refere à impugnação do trecho ‘do qual fará chegar
uma via ao substituto constitucional do Governador para que assuma o poder, no
dia em que entre em vigor a decisão da Assembleia’, constante do § 4º do artigo
232." (ADI 1.628, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-8-06, DJ de
24-11-06)”.
Saliente-se que a posição aqui sustentada
encontra amparo em precedentes desse E. Tribunal de Justiça. É o caso do
julgado relatado pelo Exmo. Des. Mohamed Amaro (ADIN 106.343-0/8-00, Ilha
Solteira, Julgado em 23.06.2004), de cuja ementa pode-se extrair o seguinte
excerto:
“Os princípios
básicos que regem a responsabilização do Chefe do Executivo por crime de
responsabilidade consagram que somente a União – no exercício de sua
competência privativa para legislar sobre direito penal e processual – poderá
definir as figuras típicas correspondentes a crimes de responsabilidade, bem
como suas normas para o respectivo processo e julgamento, restando, pois,
afastada qualquer previsão da lei orgânica municipal, regimento interno, ou
resolução legislativa, diversa do estabelecido na legislação federal
pertinente.
Aos municípios,
apenas cabe observar as normas decorrentes do Decreto-lei 201/67 – que foi
recepcionado pela nova ordem constitucional, como, expressamente, admitido pelo
Supremo Tribunal Federal.
O ESTABELECIMENTO
DE NORMAS DE PROCESSO E JULGAMENTO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE – PORTANTO,
SIGNIFICANDO INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA - É DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA
UNIÃO, POR FORÇA DO QUE DIPÕEM OS ARTIGOS 85, PARÁGRAFO ÚNICO, E 22, INCISO I,
AMBOS DA CARTA MAGNA.
Precedentes
jurisprudenciais.”
Em síntese, os dispositivos impugnados
são verticalmente incompatíveis com o art. 144 da Constituição do Estado de São
Paulo.
Diante do exposto, aguarda-se a procedência da ação,
declarando-se a inconstitucionalidade dos incisos I, II, III e IV do art. 60 e das
letras “m”, “n”, “o” e “p”, do § 1º do art. 79, da Lei Orgânica do Município de
Miguelópolis.
São Paulo, 12 de junho de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb