Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo no 0063560-62.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

                       

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 7.070, de 13 de setembro de 2012, de autoria parlamentar, que “obriga aos prestadores de serviços de estacionamento a instalação de banheiros”. As “leis de polícia” não são de iniciativa reservada ao Executivo. A matéria sobre a qual a Câmara legislou não é de iniciativa reservada, nos termos do art. 24, § 2º, da Constituição Estadual. Lei que não é arbitrária ou incompatível com a razoabilidade. Possibilidade de que o município determine aos particulares, em favor dos usuários dos serviços, a adequação dos equipamentos destinados a proporcionar-lhes conforto, “mediante oferecimento de instalações sanitárias, ou fornecimento de cadeiras de espera, ou, ainda, colocação de bebedouros” (nesse mesmo sentido: AI 347.717-AgR/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Inconsistência de violação ao art. 25, CE/89, porque a norma não cria direta e imediatamente obrigações financeiras para o poder público, impondo deveres somente aos particulares, não bastasse veicular questão de fato dependente de prova. Ação improcedente.

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Eméritos Desembargadores:

 

 

Cuida-se de ação movida pelo Prefeito do Município de Guarulhos, na qual se questiona a validade jurídico-constitucional da Lei no 7.070, de 13 de setembro de 2012, de autoria parlamentar, que obriga aos prestadores de serviços de estacionamento a instalação de banheiros. Sua redação é a seguinte:

“LEI Nº 7070, DE 13 DE SETEMBRO DE 2012.

OBRIGA AOS PRESTADORES DE SERVIÇOS DE ESTACIONAMENTO A INSTALAÇÃO DE BANHEIROS, NA FORMA QUE MENCIONA.

Autoria: Vereador Dr. Eduardo Carneiro

O Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos, Senhor EDUARDO SOLTUR, nos termos do § 7º do artigo 44 da Lei Orgânica do Município de Guarulhos, promulgada em 05 de abril de 1990, FAZ SABER que, em decorrência do silêncio do Senhor Chefe do Executivo em relação ao comunicado de rejeição, na Sessão Ordinária de 06 de setembro de 2012, do Veto Total aposto ao Autógrafo nº 068/12, referente ao Projeto de Lei nº 2267/12, de autoria do Vereador DR. EDUARDO CARNEIRO, promulga a seguinte Lei:

Art. 1º A pessoa física ou jurídica, independentemente do ramo de sua atividade, que ofereça ao público área própria ou de terceiros, gerida ou não por outro prestador de serviços, para estacionamento de veículos automotores no Município de Guarulhos, estará obrigado à instalação de banheiros para fins de atendimento aos consumidores e adequados ao uso por pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida, observado o disposto na Lei Federal nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, regulamentada pelo Decreto nº 5.296, de 02 de dezembro de 2004, e às normas de acessibilidade da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT.

Parágrafo Único - Esta Lei se aplica a estabelecimentos com o número superior a 50 (cinquenta) vagas de estacionamentos.

Art. 2º Nos locais onde houver inviabilidade técnica no fornecimento de água poderá ser utilizado banheiro tipo químico, observando a acessibilidade prevista no artigo 1º.

Art. 3º O descumprimento da presente Lei acarretará ao estabelecimento infrator multa no valor de 1000 UFGs (mil Unidades Fiscais de Guarulhos), aplicada em dobro se houver reincidência e, em caso de pessoa jurídica, cassação da inscrição municipal.

Art. 4º Esta Lei entrará em vigor depois de decorridos 60 (sessenta) dias após sua publicação.

Câmara Municipal de Guarulhos, em 13 de setembro de 2012.

EDUARDO SOLTUR

Presidente

Publicada na Secretaria da Câmara Municipal de Guarulhos e afixada em lugar público de costume aos treze dias do mês de setembro do ano de dois mil e doze.

JOSÉ CARLOS GUIMARÃES Secretário de Assuntos Legislativos.”

Publicado no Diário Oficial do Município nº 072 de 21 de setembro de 2012 - Página 23. PA nº 29611/2012.

Fonte: Departamento de Assuntos Legislativos - Prefeitura de Guarulhos.

Segundo reza a inicial, a lei em epígrafe é incompatível com a Constituição pois: [a] disciplina matéria que é de iniciativa reservada ao Poder Executivo, nos termos do art. 24, § 2º, “1” e “2” e do art. 47, da Constituição Estadual; [b] a competência para a edição de normas de produção e consumo é concorrente entre a União e os Estados, de acordo como o art. 24, V, e §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, aplicável aos Estados por força do art. 144 da Constituição Estadual; [c] há violação ao princípio da separação de poderes, pois a lei impugnada invade a esfera da gestão administrativa; [d] a lei viola o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência; [e] há afronta aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; [f] há desrespeito aos arts. 25, 174 e 176, I, da CE, tendo em vista as despesas decorrentes de execução da lei e a violação aos princípios orçamentários constitucionais; [g] há violação à Lei Orgânica Municipal.

O pedido de medida liminar foi negado (fls. 85/86).

         Citado para os fins do art. 90, § 2°, da Carta Paulista, o Procurador-Geral do Estado optou por não proceder à defesa da norma ora impugnada, que disciplina matéria exclusivamente local, inexistindo, assim, interesse estadual na sua preservação (fls. 95/96).

         A Câmara Municipal manifestou-se pela constitucionalidade e consequente improcedência da ação direta (fls. 98/109). Em síntese, aduziu que:

a) não há iniciativa reservada do Prefeito Municipal, pois não há violação do disposto no art. 24, § 2º, da Constituição Estadual;

b) não se trata de norma que afronte a competência legislativa da União sobre produção e consumo. O município tem competência para tratar sobre produção e consumo, atendendo às peculiaridades locais, tanto que editada a Súmula n. 645 pelo Supremo Tribunal Federal;

c) não há violação ao princípio da separação dos poderes, tendo em vista que o ato normativo impugnado cria obrigações aos particulares, em nada interferindo na Administração Pública;

d) não há violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, tendo em vista a criação e obrigações a estabelecimentos com mais de 50 vagas de estacionamentos, o que restringe a incidência da lei.

Em resumo, é o que consta nos autos.

Em que pese a argumentação exposta na inicial, a ação deve ser julgada improcedente.

Com efeito, o Poder Público pode condicionar e restringir o exercício de atividades e direitos individuais, em proveito da coletividade ou do próprio Estado, o que constitui típica manifestação do poder de polícia, na exata definição de HELY LOPES MEIRELLES (Cf. “Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros, 28a edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, pág. 127).

Essa atuação estatal se justifica sempre que houver algum interesse relevante da coletividade ou do próprio Estado, que serviu de norte à edição da lei municipal ora contestada.

Acerca dos meios de atuação do poder polícia, HELY LOPES MEIRELLES (ob. cit., pág. 134) anotou que: “... a polícia administrativa atua de maneira preferentemente preventiva, ela age através de ordens e proibições, mas, e sobretudo, por meio de normas limitadoras e sancionadoras da conduta daqueles que utilizam bens ou exercem atividades que possam afetar a coletividade, estabelecendo as denominadas limitações administrativas. Para tanto, o Poder Público edita leis e os órgãos executivos expedem regulamentos e instruções fixando as condições e requisitos para o uso da propriedade e o exercício das atividades que devam ser policiadas (g.n.), e após as verificações necessárias é outorgado o respectivo alvará de licença ou autorização, ao qual se segue a fiscalização competente”.

Ora, como não há reserva de iniciativa em matéria de poder de polícia, e para chegar-se a tal conclusão basta conferir o rol previsto no art. 24, § 2°, itens 1 a 6, da Constituição Paulista, a iniciativa da Câmara Municipal de Guarulhos deve ser tida por válida.

Nesse particular, aliás, a argumentação exposta na inicial é contraditória, pois, inicialmente, afirmou-se que a Câmara usurpou prerrogativa que é própria da função executiva, qual seja a de desencadear o processo legislativo nos casos expressos na Constituição, com indicação de afronta ao princípio da independência e da harmonia entre os Poderes, mas, nos tópicos subsequentes, a discussão encaminhou-se para a falta de competência municipal para legislar sobre o tema, por se tratar, na espécie, de matéria de competência da União.

Ocorre, porém, que esses fundamentos são excludentes entre si, pois se a Câmara legislou sobre matéria de competência da União, o que se admite tão só para argumentar, é evidente que nem mesmo se essa lei derivasse de projeto de iniciativa do Prefeito ela seria válida, ao passo que o reconhecimento de que houve vício de iniciativa, a contrario sensu, implica admissão de que o tema é de competência municipal.

Na verdade, porém, é insubsistente o argumento de invasão da órbita de competência da União. A uma, porque a lei municipal em questão nada dispôs sobre matéria tratada no art. 22 ou no art. 24 da Constituição Federal. A duas, porque existem certas atividades que interessam simultaneamente a todas entidades federativas e o poder de regular e de policiar se difunde entre todas as Administrações interessadas, provendo cada qual nos limites de sua competência territorial (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., pág. 126), e, à míngua de regulamentação do tema na órbita federal, inexiste óbice ao exercício da competência municipal.  

De igual modo inconsistente a alegação de vício de iniciativa, pois a lei em questão não criou/alterou cargos ou funções, nem aumentou a despesa pública e também não violou o princípio da separação de poderes. 

Em matéria de poder de polícia, a competência do Poder Executivo resume-se, basicamente, à expedição de regulamentos e instruções com a fixação das condições e requisitos para o exercício das atividades que devam ser policiadas (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p. 34), mas a restrição ou condicionamento só poderá derivar da lei, que não é reservada a nenhum Poder, não se podendo olvidar, demais, que, por constituir exceção ao princípio da iniciativa geral ou concorrente, os casos de iniciativa reservada são somente aqueles expressamente previstos na Constituição, impossibilitando, assim, que, por meio de esforço exegético incomum, conforme exposto na inicial, outras matérias sejam submetidas ao domínio exclusivo do Prefeito, o que, se for admitido por essa Egrégia Corte, caracterizará grave afronta ao princípio da independência e da harmonia entre os Poderes. 

Por esse aspecto, aliás, a inconstitucionalidade seria indireta ou reflexa, o que é insuscetível de aferição no controle abstrato de normas, à medida que o subscritor da inicial não apontou nenhum dispositivo constitucional estadual garantidor da reserva de iniciativa em favor do Poder Executivo das matérias que versem a regulamentação do poder de polícia.

Não bastasse isso, é inegável que o município pode editar legislação própria, com fundamento na autonomia constitucional que lhe é inerente (CF, art. 30, I).

Pode, portanto, determinar aos particulares, em favor dos usuários dos serviços, a adequação dos equipamentos destinados a proporcionar-lhes conforto. Por exemplo: “mediante oferecimento de instalações sanitárias, ou fornecimento de cadeiras de espera, ou, ainda, colocação de bebedouros” (nesse mesmo sentido: AI 347.717-AgR/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Tal precedente firmado pela mais Alta Corte Judiciária deste País, a qual foi encarregada da grave missão de proferir a palavra final em matéria de interpretação da Carta Fundamental, é bastante elucidativo e serve para afastar de vez o argumento contido na inicial no sentido de que o Município de Guarulhos teria usurpado a competência própria da União.

Em resumo, a Câmara legislou sobre matéria de interesse local e sobre a qual não paira reserva de iniciativa; a obrigação imposta ao particular, típica manifestação do poder de polícia estatal, somente poderia derivar de lei e o Prefeito participou ativamente do processo de formação da norma ora impugnada.

O argumento de que a lei em discussão é desarrazoada e desproporcional não comporta acolhimento, pois há perfeita adequação entre a iniciativa e o fim almejado pela norma (proteção dos usuários de serviços), além de o meio empregado não se revelar excessivo.

Além disso, não procedem as alegações de desrespeito aos arts. 25, 174 e 176, I, da CE, relacionados aos princípios orçamentários constitucionais. De observar que também é infundada a alegação do autor, ao apontar ofensa ao art. 63, IV, da Lei Orgânica do Município de Guarulhos, que “veda qualquer projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesas pública sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos” (fl. 15).

A lei não cria obrigações para o Poder Executivo, estabelecendo deveres a particulares, tendo em vista tratar-se de situação de exercício do poder de polícia, atribuição inerente ao Poder Executivo.

Com efeito, o art. 25 da Constituição do Estado tem aplicação circunscrita ao “projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública”, como explicita a própria norma com nítido intuito de responsabilidade fiscal ao exigir que, nessa circunstância, conste a indicação de recursos disponíveis, próprios para atendimento dos novos encargos.

Sua incidência é adstrita a leis que diretamente importem repercussão positiva na despesa pública, e não em qualquer lei. Em se tratando de lei que manifestamente não produza esse impacto, é descabida sua arguição por traduzir matéria de fato e de prova inadmissível no seio do controle objetivo de constitucionalidade.

A lei prescreve obrigação não se podendo cogitar que do exercício de sua execução e fiscalização derivem despesas novas sem cobertura financeiro-orçamentária, pois, já são precedentemente absorvidas pela polícia administrativa preexistente.

É verdadeiro sofisma a alegação de que toda e qualquer lei que gere despesa só possa advir de projeto de autoria do Executivo. O Supremo Tribunal Federal tem estimado que:

“não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

É que diferentemente do ordenamento constitucional anterior, “não havendo mais a expressa disposição no texto constitucional de que é iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste, não sendo cabível interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende inclusive nossa Suprema Corte”, assinala José Maurício Conti ao comentar a inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou aumentam despesa pública (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury Scaff).

Neste sentido, calha invocar o entendimento do colendo Órgão Especial:

“Nem tampouco há que se falar que a previsão legal contestada nos autos implicaria no indevido aumento de despesas do ente público local, sem a respectiva indicação da fonte de custeio, em violação ao comando contido no artigo 50 da Lei Orgânica do Município de Jundiaí, que reproduz a regra contida no artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

Com efeito, a perene fiscalização das atividades comerciais estabelecidas em seu território insere-se no poder-dever da Administração Municipal, que dela não pode furtar-se; assim, não merece acolhida o argumento de que a proibição de comercializarem a substância ‘organofosforado carbamato’, imposta aos ‘pet shops’, casas de ração e similares no Município de Jundiaí, implicaria no aumento de despesa do ente público local, ao estabelecer encargo ao Poder Executivo.

Ora, tais quais todas as demais empresas instaladas, os estabelecimentos destinatários dessa norma legal devem estar sob permanente vigilância dos órgãos públicos locais responsáveis, aos quais incumbe verificar o pleno atendimento da legislação de regência, não se podendo então falar na criação de nova obrigação ao Município pela Lei n° 7.341/09.

A propósito, já decidiu esta Corte Paulista, em caso análogo, que ‘o dever de fiscalização do cumprimento das normas é conatural aos atos normativos e não tem, no caso, efeito de gerar despesas ao Município. Além disso, a matéria tratada na lei impugnada é de polícia administrativa, e as obrigações foram impostas aos particulares, exclusivamente’ (v. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 0006247-80.2012.8.26.0000, relator Desembargador Guerrieri Rezende). (...)” (TJSP, ADI 0580128-04.2010.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, m.v., 30-01-2013).

Nessas circunstâncias, o Ministério Público aguarda a improcedência desta ação direta de inconstitucionalidade, à medida que a matéria legislada é de competência municipal e a Câmara não usurpou competência que é própria da função executiva.

 

São Paulo, 3 de julho de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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