Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0063562-32.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei n. 7.081, de 14 de dezembro de 2012, do Município de Guarulhos. Denominação de terminal de ônibus. Iniciativa parlamentar. Separação de poderes. Reserva da Administração. Procedência. 1. A denominação de bens, prédios, logradouros e vias do patrimônio público é ato privativo da gestão administrativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. 2. Lei municipal de iniciativa parlamentar que usurpa a reserva da Administração, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE/89). 4. Parecer pela procedência.

 

Colendo Órgão Especial:

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 7.081, de 14 de dezembro de 2012, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que atribuiu a denominação de “Terminal João Amazonas”, ao Terminal de ônibus localizado na confluência da avenida Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira com a estrada do Caminho Velho, bairro do Pimentas, em Guarulhos, sob alegação de violação aos artigos da Constituição Estadual arrolados na inicial. Deferida a liminar (fl. 47), a douta Procuradoria Geral do Estado não manifestou interesse na defesa do ato (fls. 57/58) e as informações foram prestadas (fls. 60/67).

2.                É o relatório.

3.                Procede a ação, mas tão somente quanto ao vício de iniciativa, por versar o diploma legal a respeito de um ato concreto da Administração.

4.                Não há, contudo, criação de estrutura, atribuições, funcionamento, planejamento, regulamentação ou gerenciamento de órgãos da administração, nem mesmo criação de despesas para ela, o que inviabiliza o acolhimento da ação com relação a todas as demais argumentações tecidas na inicial.

5.                Por outro lado, não há na Constituição em vigor reserva de iniciativa para denominação de bens públicos em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.

6.                Contudo, é necessário distinguir as seguintes situações: (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, ou alterações na nomenclatura já existente, caso em que a iniciativa é concorrente; (b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Executivo.

7.                No Brasil, como se sabe, o governo municipal é de funções divididas, incumbindo à Câmara as legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. Nesta sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, 8.ª ed., p. 427 e 508).

8.                Em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de atos concretos de administração.

9.                Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes (ob. cit., p. 429). Assim, no exercício de sua função legislativa, a Câmara está autorizada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

10.              A nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, 2.ª ed., p. 285).

11.              De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível.

12.              Diferente é a finalidade da denominação de próprios, em que não se visa a orientar a população, mas simplesmente a homenagear pessoas ou fatos históricos.

13.              Contudo, a despeito de tal distinção, nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente fixados em lei editada para regulamentar essa matéria.  

14.              Em suma, a Câmara pode, por meio de lei, compelir o Prefeito a atender tal determinação, sem usurpar sua função. Mas não poderá, como ocorre na hipótese vertente, editar norma de conteúdo concreto e individualizante, conferindo a denominação de logradouro específico.

15.              Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula desenvolvida pelo célebre jusfilósofo Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a Administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis, pois a Constituição é clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (Constituição Estadual, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (Constituição Estadual, art. 47, XIV), ou seja, emitir atos administrativos ou normativos na esfera de sua atribuição exclusiva (também denominada reserva da Administração).

16.              Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

17.              Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (Constituição Estadual, art. 5.º).

18.              A propósito, ao examinar assunto o insigne Ministro FRANCISCO REZEK deixou registrado que:

 

“No contexto dos debates que esta matéria provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade imobiliária, ou a visão do poder Executivo como titular do domínio dos bens públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos da Justiça” (STF, Rp 1.117-SP).

 

19.              Sobre o tema, este egrégio Tribunal de Justiça já decidiu:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente” (ADI 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte Nordi, 20-07-2005).

 

20.              A Câmara não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros e próprios públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.

21.              Em suma, a denominação de bens, prédios, logradouros e vias do patrimônio público é ato privativo da gestão administrativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Lei municipal de iniciativa parlamentar sobre o assunto usurpa a reserva da Administração, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º da Constituição Estadual).

22.              Opino pela procedência da ação.

 

São Paulo, 15 de julho de 2013.

                                    

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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