Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº
0076093-53.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito
do Município de Bertioga
Requerido: Presidente
da Câmara Municipal de Bertioga
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito. Lei nº 1.041 de 09 de outubro de 2012, do Município de Bertioga que “Institui a semana da Segurança Pública”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao chefe do Poder Executivo. Arts. 2º, 3º e 4º, que violam o princípio da separação dos poderes, com ofensa aos artigos 24, § 2º, 2; 47, II, XI, XIV e XIX, a, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Criação de despesas e obrigação à Administração (art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo). Parecer pela procedência parcial da ação.
Colendo
Órgão Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Bertioga, tendo por objeto a Lei nº 1.041, de 09 de outubro de 2012, daquele município que “Institui a semana da Segurança Pública”.
O
autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e
que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto
foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara
Municipal.
Sustenta
que a lei em questão cria obrigações para a Administração, havendo usurpação
por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias
do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição
Estadual.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato
impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls.
34/35).
O Presidente da Câmara Municipal prestou informações, em
defesa da constitucionalidade da norma atacada (fls. 37/43).
Este
é o breve resumo do que consta dos autos.
Ação procede, em parte.
A
lei impugnada do Município de Bertioga assim dispõe:
“Art. 1º. Fica criada a semana de
conscientização sobre Segurança Pública a nível municipal no âmbito da cidade
de Bertioga.
Art. 2º. A data da realização da
semana de Segurança Pública fica a critério do Poder Executivo.
Art. 3º. O Poder Executivo deverá
incentivar discussões, criar eventos alusivos à segurança do cidadão e promover
palestras e seminários, envolvendo toda sociedade.
Art. 4º. Deverão ser tratados
temas como segurança no trânsito, segurança no trabalho, segurança nas escolas,
segurança nas praças e outros locais de lazer.
Art. 5º. Esta Lei entrará em vigor
na data de sua publicação.
Art. 6º. Revogam-se as normas em contrário.”
Com todo respeito, a Carta em vigor não contém nenhuma disposição que impeça a Câmara de Vereadores de legislar sobre atividade de conscientização sobre segurança pública, nem tal matéria foi reservada com exclusividade ao Executivo.
Por força da Constituição, os municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive sobre atividades que visam conscientizar a população sobre segurança pública.
Por outro lado, eméritos Desembargadores, a matéria em questão não é de competência reservada ao Executivo.
Ocorre que a Constituição em vigor nada dispôs sobre a instituição de reserva em favor do Executivo da iniciativa de leis que versem sobre programas de conscientização. Como as situações previstas no art. 24, § 2º, da Carta Paulista constituem exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente, a sua interpretação deve sempre ser restritiva, máxime diante de sua repercussão no postulado básico da independência e da harmonia entre os Poderes.
Cada ente federativo dispõe de autonomia para fixar semana de programa que visa trazer conscientização sobre segurança pública, só havendo limites quanto à fixação de feriados, por força de legislação federal de regência, o que, porém, não ocorre na situação em análise.
Assim, com a devida vênia, não é possível recusar à Câmara de Vereadores o direito de legislar sobre assunto de interesse local e sobre o qual não paira reserva de iniciativa.
Contudo,
o que até aqui restou dito não se aplica aos arts. 2º,
3º e 4º, da Lei 1.041/12, do Município de Bertioga, que são verticalmente
incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os
seus arts. 5.º; 24, § 2º, 2; 47, incs. II e XIV; e 144 os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)
§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
2 – criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;”
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de
outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer,
com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração
estadual;
(...)
XI - iniciar o
processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;
(...)
XIV - praticar
os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor,
mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
Como visto, a impugnada norma cria obrigações para a Administração, ao dispor que “O Poder Executivo deverá incentivar discussões, criar eventos alusivos à segurança do cidadão e promover palestras e seminários, envolvendo toda sociedade.” Determina, ainda, à Administração no art. 4º, quais os assuntos a serem tratados.
Com isso, há geração de obrigação à Administração e, consequentemente, maiores despesas, o que importa em invasão da seara administrativa.
Nos
entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi
incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do
postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela
edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para
as atividades de gestão.
Essa
repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do
princípio da independência e da harmonia entre os Poderes (art. 2º),
preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num
único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.
A
tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades
de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange,
efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.
Por
intermédio do dispositivo em análise, a Câmara criou uma espécie de programa que visa
conscientizar a população a respeito da segurança pública, no âmbito do
Município de Bertioga, onerando, desta forma, a Administração. Embora elogiável
a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como
prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos
que são próprios da função executiva.
Por
esse motivo, a Constituição Estadual conferiu ao Governador do Estado a
iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da
Administração Pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de
questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância
obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado,
tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:
“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).
Se
a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para
os Municípios.
As
normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo
derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo
jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo
competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos
(Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não
são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em
face de vício de iniciativa.
Sobre
isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e
aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por
inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos
afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar
prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode
delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).
Nota-se,
por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide
com o disposto no artigo 25, da Constituição Bandeirante.
Esse
Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que
infringem esses comandos:
“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).
Diante
do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação
direta, declarando-se a inconstitucionalidade
dos arts. 2º, 3º e 4º, da Lei nº 1.041, de 09 de
outubro de 2012, do Município de Bertioga.
São Paulo, 27 de junho de
2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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