Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 0076098-75.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Bertioga
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1.035, de 09 de outubro de 2012, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Cria o programa de teste vocacional para os alunos das escolas públicas municipais e dá outras providências”.
2) A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX, “a” e 144 da Constituição do Estado).
3) Parecer pela procedência da ação.
Colendo Órgão
Especial
Senhor Desembargador
Relator
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 1.035, de 09 de outubro de 2012, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Cria o programa de teste vocacional para os alunos das escolas públicas municipais e dá outras providências”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violação do princípio da separação dos poderes e por criar despesas sem indicação dos recursos disponíveis. Ademais, o Poder Legislativo não pode exigir que o Poder Executivo regulamente lei de iniciativa parlamentar. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 25, 47, III e 144, da Constituição Estadual.
A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 65/67).
Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a validade do ato normativo impugnado (fls. 68/74).
É o breve relato do ocorrido nos autos.
Procede o pedido.
Com efeito, a Lei nº 1.035, de 09 de outubro de 2012, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:
“Art. 1º - Fica criado o Programa Municipal “Teste Vocacional para o
aluno das Escolas Públicas Municipais”.
Art.
2º - Ficam as Escolas Públicas Municipais obrigadas a aplicar testes
vocacionais nos alunos matriculados na última série do ensino fundamental.
I-
Os testes a que se refere o caput
deste artigo são gratuitos para todos os alunos do Ensino Fundamental da rede
Pública Municipal.
II-
Os testes serão programados e aplicados por equipes técnicas especializadas na
área de psicologia.
Art.
3º - As condições Técnico-Operacionais e os objetivos
específicos dos testes vocacionais, aplicados nos termos desta lei, são de
responsabilidade da Secretaria de Educação.
Art.
4º - As despesas decorrentes da aplicação da presente Lei correrão por conta de
verbas próprias consignadas no orçamento.
Art.
5º - Dentro de 60 (sessenta) dias a contar da publicação desta lei, o chefe do
Executivo fará a sua regulamentação por Decreto.
Art.
6º - Revogam-se as disposições em contrário.”
Verifica-se que a Lei Municipal impugnada instituiu programa para a realização de teste vocacional nos alunos matriculados na última série do ensino fundamental no Município de Bertioga.
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto nos arts. 5, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, “a”, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5º - São
Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 24 - A iniciativa das leis
complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia
Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao
Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos
nesta Constituição.
§ 2º- Complete, exclusivamente, ao
Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
2- criação e extinção das Secretarias
de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47,
XIX;
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao
Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
II – exercer, com o auxílio dos
Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
XIV – praticar os demais atos de
administração, nos limites da competência do Executivo;
XIX- dispor, mediante decreto, sobre:
a) Organização e funcionamento da
administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa. Nem criação
de órgãos públicos.
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com
autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A questão é objetiva.
Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a criação ou instituição de programas e serviços nas diversas áreas de gestão, envolvendo os órgãos da Administração Pública Municipal e a própria população.
Assim, quando
o Poder Legislativo do Município edita lei criando ou “autorizando o Poder Executivo a criar” novo programa de governo,
disciplinando-o total ou parcialmente, como ocorre, no
caso em exame, em função da instituição de programa para a realização de teste
vocacional nos alunos matriculados na última série do ensino fundamental no
Município de Bertioga, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade
do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Observa-se que o Poder Legislativo não se limitou à criação do programa, ao contrário, disciplinou-o e impôs obrigações ao Poder Executivo (aplicação de testes vocacionais por equipes técnicas especializadas na área da psicologia e regulamentação da lei através de Decreto).
A criação de programas com previsão de novas obrigações aos órgãos municipais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade de programas em benefício da população. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro Poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 5º, 47, II e XIV e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela
em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades
inerentes ao Poder Público.
De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito
que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara
que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
É
ponto pacífico que “as regras do processo
legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa
reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros”
(STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos
Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da
separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do
Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2,
iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na
órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da
administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que
compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração
Pública direta.
Também
prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144),
competência privativa do chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a
atribuição de governo do chefe do Poder Executivo, traçando suas competências
próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de
Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à
interferência do Poder Legislativo.
A
alínea a do inciso XIX desse art. 47
fornece ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor
mediante decreto sobre “organização
e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de
despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito
semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos
II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da
administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da
competência do Poder Executivo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.
Pois,
ao instituir programa ou serviço administrativo, de um lado, ela viola o art.
47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da
administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art.
24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao
Poder Executivo.
Neste
sentido, a jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.
II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).
Além
disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.
A norma combatida, ao instituir programa ou serviço de incumbência do Poder Executivo, não indica os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instituição demanda meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.
A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.
Diante
do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a
inconstitucionalidade da Lei nº 1.035, de 09 de outubro de 2012, do Município de
Bertioga.
São Paulo, 21 de junho de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb