Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0084295-19.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Santa Rita do Passa Quatro

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Santa Rita do Passa Quatro

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 46, de 22 de março de 2013, de iniciativa parlamentar, que alterou o § 3º do art. 7° da Lei Complementar nº 37, de 06 de junho de 2012, do Município de Santa Rita do Passa Quatro, aumentando de 20% para 50% o percentual mínimo de cargos em comissão destinados a servidores efetivos do Poder Executivo Municipal.

2)      Preliminar. Ilegitimidade ativa da Prefeitura Municipal. Parte legítima para a ação direta de inconstitucionalidade é o Chefe do Poder Executivo, que não subscreveu a petição inicial, nem outorgou o instrumento procuratório com poderes específicos. Extinção do processo por falta de uma das condições da ação.

3)      Mérito. A organização administrativa do serviço público e o do regime jurídico dos servidores públicos é matéria de iniciativa legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Propositura legislativa dependente de planejamento para verificação da adequação do quadro de pessoal às necessidades do serviço público, atividade típica do Poder Executivo.

4)      Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, 47, II e XIV, da Constituição Estadual. Procedência do pedido.

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Complementar nº 46, de 22 de março de 2013, de iniciativa parlamentar, que alterou o § 3º do art. 7° da Lei Complementar nº 37, de 06 de junho de 2012, do Município de Santa Rita do Passa Quatro, aumentando de 20% para 50% o percentual mínimo de cargos em comissão destinados a servidores efetivos do Poder Executivo Municipal.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, além de intromissão e invasão do Poder Legislativo no Poder Executivo, importando violação do princípio federativo e da independência e da harmonia dos poderes. Aponta, assim, contrariedade aos arts. 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspensão, com efeito ex tunc, da vigência e eficácia da Lei Complementar nº 46, de 22 de março de 2013, do Município de Santa Rita do Passa Quatro (fl. 110/111).

Notificado (fl. 117), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações sustentando a validade do ato normativo impugnado (fls. 125/133).

Citado regularmente (fl. 120), o Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 122/123).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

PRELIMINARMENTE

Ausente a condição da ação referente à legitimidade de parte.

Figura no polo ativo da presenta ação a Prefeitura Municipal de Santa Rita do Passa Quatro.

A petição inicial é subscrita apenas por procuradores do município (f. 20), com mandato outorgado pelo Município de Santa Rita do Passa Quatro (fl. 21).

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais, ou, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Esse Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente” (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012)

No caso dos autos, figurou no polo ativo a Prefeitura Municipal, parte manifestamente ilegítima para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

Assim sendo, requeiro que seja extinto o processo sem resolução do mérito, por falta da condição de ação referente à legitimidade da parte, nos termos do art. 267, VI, do Código de Processo Civil.

NO MÉRITO

Procede o pedido.

A Lei Complementar nº 46, de 22 de março de 2013, do Município de Santa Rita do Passa Quatro, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Altera o §3º do art. 7º da Lei Complementar 037/2012.

§3º- A lei de criação dos cargos em comissão deverá fixar percentual não inferior a 50% para provimento dos servidores efetivos do Poder Executivo Municipal.

Art. 2º - Esta Lei entrará em vigor a partir de 1º de abril de 2013, revogadas as disposições em contrário.”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Verifica-se que a lei municipal impugnada disciplina, apenas no âmbito do Poder Executivo, em atenção ao art. 115, V, da Constituição Estadual, o percentual mínimo dos cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira.

 Desta forma, a lei de iniciativa parlamentar revela-se invasiva da esfera da iniciativa privativa do Poder Executivo.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e da harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, o ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou de matéria relativa a direitos e garantias dos servidores públicos disciplinando aspectos integrantes de seu regime jurídico, cuja iniciativa cabe ao Chefe do Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 1 e 4).

Tal regramento deve ser observado pelos municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da Constituição Paulista.

As entidades estatais são livres para organizar o seu pessoal para o melhor atendimento dos serviços a seu cargo, devendo, porém, observarem três regras fundamentais: que a organização se faça por lei; que a iniciativa seja exclusiva da entidade ou Poder interessado; e que sejam consideradas as normas constitucionais pertinentes ao servidor público.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos tão só do Poder Executivo, como ocorre, no caso em exame, em função da alteração do percentual mínimo de cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

O estabelecimento de percentual de cargos em comissão a serem ocupados por servidor de carreira, importa em alteração na dinâmica  da administração do pessoal, haja vista a necessidade de avaliar dentro da estrutura administrativa do serviço público a quantidade de funcionários exigida para o funcionamento da máquina administrativa, pois a utilização de um percentual de servidores de carreira para ocupação de determinado percentual dos cargos em comissão por servidores de carreira, deverá ser compensada com a previsão de funcionários para o exercício das atribuições do servidor nomeado.

Não se trata, portanto, de mera atividade legislativa, haja vista que para a propositura há necessidade de planejamento e averiguação das exigências do serviço público, atividade nitidamente administrativa, representativa de ato de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

Ao modificar o percentual, o legislador modifica, em aspecto relevante, a estrutura funcional do serviço público reguladora da atividade da Administração local, que se mostra fundamental na organização do governo. A repercussão direta dessa mudança afeta direta e indiretamente o regime dos servidores.

Por tratar-se de evidente matéria de organização administrativa, a iniciativa do processo legislativo está reservada ao chefe do Poder Executivo. Os Municípios devem obediência às regras de iniciativa legislativa reservada, fixadas constitucionalmente, sob pena de violação do modelo de harmônica tripartição de poderes, consagrado pelo constituinte originário.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 24, § 2°, 1 e 4 e 144).

Resta, ainda, assinalar que o Legislador ao definir ou alterar o percentual de cargos em comissão a serem ocupados por servidores de carreira, está alterando aspecto relevante da gestão administrativa. Essa determinação ou mudança de orientação deve partir, ainda que dependente de lei, da própria Administração Pública.

Diante do exposto, aguarda-se seja extinto o processo sem resolução do mérito por ilegitimidade de parte ativa, e, caso superada a preliminar, seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 46, de 22 de março de 2013, de Santa Rita do passa Quatro.  

São Paulo, 20 de agosto de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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