Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 0088280-93.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Bertioga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, tendo por objeto a Lei n.º 982, de 31 de agosto de 2011, do Município de Bertioga, que “dispõe sobre a inclusão no Calendário de Eventos do Município o ‘Dia Mundial da Economia Solidária’ a ser comemorado anualmente durante a Semana do Meio Ambiente”.

2) Lei de iniciativa parlamentar. Parágrafos 1º e 2º do art. 1º da Lei n. 982/2011, que violam o princípio da separação dos poderes, com ofensa aos artigos 24, § 2º, 2; 47, II, XI, XIV e XIX, a, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Criação de despesas e obrigação à Administração (art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo).

3) Parecer pela procedência parcial da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, tendo por objeto a Lei n.º 982, de 31 de agosto de 2011, do Município de Bertioga, que “dispõe sobre a inclusão no Calendário de Eventos do Município o ‘Dia Municipal da Economia Solidária’ a ser comemorado anualmente durante a Semana do Meio Ambiente”.

O autor argumenta que a lei nasceu na Câmara Municipal e viola o princípio da separação dos poderes, além do que impõe obrigações à Administração Pública que gerariam despesas.

Aponta como violados os arts. 5º, 25, 47, incisos II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

A Câmara Municipal de Bertioga prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 48/54).

A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 62/64).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Procede em parte o pedido.

Com efeito, a Lei nº 982, de 31 de agosto de 2011, do Município de Bertioga apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º. – Fica criado no calendário de eventos do Município de Bertioga o “Dia Municipal da Economia Solidária”, a ser comemorado anualmente durante a Semana do Meio Ambiente.

§1º - Em dia a ser determinado pela Secretaria, dentro da semana do meio ambiente, deverá ser realizada uma grande mobilização da população, onde cada munícipe contribuirá de alguma forma na economia de fontes de energia não renováveis.

§2º - Fica autorizado o Executivo Municipal a realizar campanhas, palestras e eventos.

Art. 2º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação”.

          Pois bem. A Constituição vigente não contém nenhuma disposição que impeça a Câmara de Vereadores de legislar sobre a fixação de datas comemorativas, nem tal matéria foi reservada com exclusividade ao Executivo ou mesmo situa-se na esfera de competência legislativa privativa da União.

         Por força da Constituição, os municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive a fixação de datas comemorativas, e de suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II).

         A fixação de datas comemorativas por lei municipal não excede os limites da autonomia legislativa de que foram dotados os municípios, mesmo considerando-se a existência de lei federal a dispor sobre esse tema, porquanto no rol das matérias de competência privativa da União (art. 22, I a XXIV) nada há nesse sentido, ou seja, prevalece a autonomia municipal.

         Por outro lado, a matéria em questão não é de competência reservada ao Executivo.

         A Constituição em vigor nada dispôs sobre a instituição de reserva em favor do Executivo da iniciativa de leis que versem sobre a fixação de datas comemorativas e, como as situações previstas no art. 24 da Carta Paulista constituem exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente, a sua interpretação deve sempre ser restritiva, máxime diante de sua repercussão no postulado básico da independência e harmonia entre os Poderes.

         Cada ente federativo dispõe de autonomia para fixar datas comemorativas que sejam relacionadas com fatos ou pessoas que façam parte de sua história, só havendo limites quanto à fixação de feriados, por força de legislação federal de regência, o que, porém, não ocorre na situação em análise.

         Assim, com a devida vênia, não é possível recusar à Câmara de Vereadores o direito de legislar sobre assunto de interesse local, qual seja, proteção ao meio ambiente.

Desta feita, no exercício da competência suplementar, compreendida como sendo a “autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local” (Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743), o Município de Bertioga editou a Lei nº 982, de 31 de agosto de 2011, para instituir o “Dia Municipal da Economia Solidária”, a ser comemorada anualmente durante a semana do meio ambiente.

Contudo, o que até aqui restou dito não se aplica aos parágrafos 1º e 2º do art. 1º da Lei 982/11, do Município de Bertioga, que são verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º; 24, § 2º, 2; 47, incs. II e XIV; e 144 os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

2 – criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;”

(...)

Art. 47  Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição: 

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual; 

(...)

XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição; 

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo; 

(...) 

XIX - dispor, mediante decreto, sobre: 

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Isto porque, os atos normativos mencionados criam obrigações para a Administração Pública, conforme determina o § 1º do art. 1º da lei impugnada, ao determinar caber à Secretaria, dentro da semana do meio ambiente para realizar uma grande mobilização da população, na qual cada munícipe contribuirá de alguma forma na economia de fontes de energia não renováveis, bem como a realização de campanhas, palestras e eventos.

Com isso, há geração de obrigação à Administração e, consequentemente, maiores despesas, o que importa em invasão da seara administrativa.

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e da harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

Por intermédio do dispositivo em análise, a Câmara criou obrigações ao Executivo Municipal, visando conscientizar a população a respeito da preservação do meio ambiente, no âmbito do Município de Bertioga, onerando, desta forma, a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da Administração Pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que os dispositivos referidos geram aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colidem com o disposto no artigo 25 da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2° do art. 1º da Lei n. 982, de 31 de agosto de 2011, do Município de Bertioga, “dispõe sobre a inclusão no Calendário de Eventos do Município o ‘Dia Mundial da Economia Solidária’ a ser comemorado anualmente durante a Semana do Meio Ambiente”.

São Paulo, 30 de julho de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb