Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 0088282-63.2013.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal de Bertioga
Requerido:
Presidente da Câmara Municipal de Bertioga
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 979, de 31 de agosto de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o ‘Atendimento Psicológico’ nas escolas públicas do Município de Bertioga”.
2)
Encontra-se na reserva da administração e na
iniciativa legislativa reservada do chefe do Poder Executivo
a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, por órgãos do
Poder Executivo, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela
ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da
Constituição Estadual).
3) Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial
Senhor Desembargador
Relator
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade,
tendo como alvo a Lei nº 979, de 31 de agosto de 2011, do Município de
Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe
sobre o ‘Atendimento Psicológico’ nas escolas públicas do Município de
Bertioga”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violação dos arts. 5º, 25, 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual.
A liminar foi indeferida (fl. 34).
Citado regularmente (fl. 40), o Senhor Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 42/44).
Devidamente notificado (fls. 37), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 46/52 defendendo a validade do ato normativo impugnado.
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
Procede o pedido.
A Lei nº 979, de 31 de agosto de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:
“Art. 1. Fica instituído o ‘Atendimento Psicológico’ nas Escolas Públicas do Município de Bertioga.
§ 1º. O atendimento a que se refere o caput deste artigo visa atender exclusivamente crianças e adolescentes regularmente matriculados na rede pública municipal de ensino.
§ 2º. O atendimento poderá ser executado por profissionais da saúde e estagiários, devidamente habilitados.
Art. 2º. O Poder Executivo celebrará parcerias e convênios com Universidades, faculdades, entidades profissionais e órgãos públicos, visando a execução desta Lei.
Art. 3º. O Executivo regulamentará por decreto a presente Lei, no prazo de 120 dias a partir de sua publicação.
Art. 4º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições
previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não
implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei
orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal
e nesta Constituição.
(...)”
A matéria disciplinada pela Lei
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito
Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
O Serviço de Atendimento Psicológico instituído pelo ato normativo impugnado em benefício de crianças e adolescentes matriculadas na rede pública municipal de ensino - precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo
e inserida na esfera do poder discricionário da
administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode,
através de lei, ocupar-se da administração, sob pena
de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder
Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando a atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da criação do serviço de Atendimento Psicológico nas escolas públicas municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação de serviços em benefício dos munícipes. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela
em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades
inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma
primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara
não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica
atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao instituir serviço municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV,
no estabelecimento de regras que respeitam a direção da administração, a organização
e o funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva
da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2,
na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao instituir serviço de atendimento psicológico na rede municipal de ensino, não indicou os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.
Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 979, de 31 de agosto de 2011, do Município de Bertioga.
São Paulo, 21 de junho de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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