Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0088287-85.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Bertioga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 945 de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Institui o Serviço de Disque-Saúde no Município de Bertioga".

2)      A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 47, II, XIV e XIX, “a”; e 144 da Constituição do Estado).

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 945, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Institui o Serviço de Disque-Saúde no Município de Bertioga".

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violar o princípio da separação dos poderes, conter vício de iniciativa e não indicar a origem dos recursos para arcar com os novos gastos. Daí a afirmação de ofensa ao disposto nos arts.  5º; 25, 47, II e XVI; e 144, da Constituição Estadual.

O pedido de medida liminar foi deferido para sustar “ex nunc” a eficácia do dispositivo legal impugnado (fls. 43/44) .

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 51/57).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 67/69).

É o relato do essencial.

A Lei nº 945, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

“Art. 1º. Fica instituída no Município de Bertioga, o serviço de 'DISQUE-SAÚDE', para atendimento e marcação de consultas por telefone, aos usuários dos postos de Saúde do Município.

Art. 2º. O munícipe que desejar fazer uma consulta médica, psicológica ou odontológica, poderá telefonar para a Secretaria de Saúde, onde um funcionário irá agendar o dia e o horário disponíveis em qualquer Unidade de Saúde do Município.

Art. 3º. Trinta dias após a publicação da presente Lei, o Prefeito Municipal, regulamentará o funcionamento do serviço.

Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário."

No mérito, a ação deve ser julgada procedente.

Com efeito, o ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar os princípios da separação de poderes, e da reserva da Administração previstos respectivamente nos arts. 5º; 47, II, XIV e XIX “a”, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

XIX – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;”

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A questão é objetiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo gerir a prestação dos serviços públicos. E a Lei em foco cria a obrigação para a Administração de instituir o "Disque-Saúde", para disponibilizar o serviço de atendimento do munícipe que pretender agendar uma consulta nos Postos de Saúde do Município.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando obrigações ou disciplinando a forma de prestação do serviço público, com novas despesas, como ocorre no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

A prestação de serviços com previsão implícita de novas obrigações aos órgãos municipais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais dos servidores públicos. Assim, privativa do Poder Executivo.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade de programas em benefício seus servidores. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º; art. 47, II, XIV e XIX “a”; e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise, representados pela criação de obrigações, que geram despesas, referentes ao fornecimento de equipamentos aos coletores de lixo.

Evidente, portanto, que a atuação legislativa impugnada equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

O art. 47 da Constituição Estadual (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Ao dispor sobre a forma de prestação dos serviços administrativos ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, “a”, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva de Administração, como já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Cabe ainda ressaltar que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida ao instituir obrigações ao Poder Executivo não indica especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordena o fornecimento de equipamentos aos coletores de lixo à Administração Pública.

A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.

A propósito da questão em análise nesses autos, esse Colendo Órgão Especial já se pronunciou reiteradamente acerca da inconstitucionalidade das leis que deliberam acerca de atividade típicas da Administração. Senão vejamos:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei do Município de Americana nº 4.972/2010, a qual cria o Programa de Internet Banda Larga Gratuita no Município. Inadmissibilidade. Tema relativo a atos de gestão. Ingerência do Legislativo em matéria de competência privativa do Executivo. Vedação. Arts. 37, X, e 169, § 1º, I e II, da CF/88 e arts. 5º, § 2º, 47, II, XIV, 25 e 144, todos da Constituição Paulista Ação julgada procedente. Deve ser julgada procedente ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal que abriga matéria de competência privativa do Executivo, pelo vício de iniciativa e por afrontar o princípio da separação e harmonia entre os Poderes.” (Adin 0180003-33.2012.8.26.0000. Rel. Des. Luis Ganzerla, j. 05/12/2012)

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Catanduva que autorizou o Executivo a fornecer muro de estádio municipal para publicidade - Vício de iniciativa - Lesão ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de caráter administrativo, por se referir à gestão de bens públicos - Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei 5.282/09, do Município de Catanduva.” (Adin 0053802-93.2012.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 27/06/2012)

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, que cria programa de assistência à gestante e ao recém-nascido - Vício de iniciativa - Violação ao princípio da separação de Poderes (art. 5o, da Constituição Estadual) - Ingerência na competência do Executivo, por atribuir-lhe obrigações e interferir em questões atinentes à administração pública - Ação procedente.”          (Adin 0027900-41.2012.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 12/09/2012)

“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei Municipal n. 6.988, de Guarulhos - Ato normativo que institui o programa de  equoterapia, destinado a crianças e adultos com deficiência física e/ou mental ou com distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes - Norma de iniciativa parlamentar - Programa que engloba a gestão administrativa pública - Teoria dos poderes implícitos - Criação indireta de cargos públicos na administração direta - Impossibilidade - Vício de iniciativa - Inteligência dos arts. 24, § 2o, 1, art. 47, II, e 144, da CE - Precedentes deste E. Órgão Especial e do C. STF - Despesa com remuneração não acompanhada de previsão legal e prévia dotação orçamentária - Gastos com instituição e manutenção do programa sem a correspondente indicação de receita Afronta aos arts. 25 e 169, p.ú., 1, da CE. Inconstitucionalidade reconhecida.” (Adin 0070117-02.2012.8.26.0000. Rel. Des. Grava Brasil, j. 08/08/2012)

Diante do exposto, aguarda-se, caso vencida a prejudicial de irregularidade de representação, seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 945, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga.

São Paulo, 16 de outubro de 2013.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

fjyd