Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0088288-70.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Bertioga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 955, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de postos para coletas de medicamentos usados e dá outras providências”.

2)      A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (arts. 25 e 176, I da Constituição Estadual). Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, “2”, 47, II,  XIV e XIX, “a”, e 144 da Constituição do Estado).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 955, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de postos para coletas de medicamentos usados e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violar o princípio da separação dos poderes, conter vício de iniciativa e criar despesas sem indicação dos recursos disponíveis. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts.  5º, 25, 47, II e XIV, e 144, da Constituição Estadual.

O Procurador Geral do Estado foi regularmente citado e declinou da defesa do ato legislativo impugnado (fls. 47/48).

A Câmara Municipal prestou informações às fls. 53/59, defendendo a constitucionalidade do ato normativo impugnado.

É o breve relato do ocorrido nos autos.

Procede o pedido.

A Lei nº 955, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de postos para coletas de medicamentos usados e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“Lei nº 955, de 28 de janeiro de 2.011

‘Dispõe sobre a criação de postos para coletas

de medicamentos usados e dá outras

providências’

Autoria: Vereador Marcelo Heleno Vilares

Art. 1°. A Prefeitura do Município de Bertioga criará postos de coleta de medicamentos usados, que tenham prazo de validade vencido ou não, que serão descartados pela população.

Parágrafo único. Os postos de coleta deverão estar em locais de fácil acesso à população, preferencialmente dentro do Hospital Municipal, Pronto Socorro e Postos de Saúde da Cidade.

Art. 2°. A Prefeitura Municipal de Bertioga contratará uma firma especializada em recolhimento de lixo hospitalar que possa recolher também a medicação descartada e dê ao produto o devido fim.

Art. 3°. Responsabilizar-se-á a Prefeitura Municipal de Bertioga, junto à Secretaria de Saúde, pela criação de campanha educativa e de conscientização junto à população da cidade, enfatizando a importância do descarte em locais adequados de medicação usada, com prazo de validade vencido ou não, e dos perigos da utilização de medicamentos usados, com prazo de validade vencido e sem indicação médica.

Art. 4°. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 5º. Revogam-se as disposições em contrário.

Bertioga, 28 de janeiro de 2.011.

Ver. Marcelo Heleno Vilares

Presidente”

Verifica-se que a Lei Municipal impugnada criou e disciplinou um programa de coleta de medicamentos, estabelecendo obrigações e sanções a órgãos públicos e ao próprio Chefe do Poder Executivo.

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com o nosso ordenamento constitucional por violar os princípios da separação de poderes e da reserva da administração previstos respectivamente nos arts. 5º, 24, § 2º, “2”, 47, II, XIV e XIX, “a” da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição (...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A questão é objetiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a criação ou a instituição de programas e serviços, nas diversas áreas de gestão, envolvendo os órgãos da Administração Pública municipal e a própria população.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando verdadeiro programa de coleta de medicamentos, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

A criação de programas em benefício da população com previsão implícita de novas obrigações aos órgãos municipais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade de programas em benefício da população. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro Poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. A atuação legislativa impugnada equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

O art. 47 da Constituição Estadual (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Pois, ao instituir programa ou serviço administrativo, de um lado, ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

Além disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Criar programas para os cidadãos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Poder Executivo.

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com os arts. 25 e 176, I da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida, ao instituir obrigações a órgãos administrativos e ao próprio Chefe do Poder Executivo, não indica especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.

A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.

A propósito da questão em análise nesses autos, esse Colendo Órgão Especial já se pronunciou reiteradamente acerca da inconstitucionalidade das chamadas lei autorizativas que deliberam acerca de atividade típicas da administração. Senão vejamos:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei do Município de Americana nº 4.972/2010, a qual cria o Programa de Internet Banda Larga Gratuita no Município. Inadmissibilidade. Tema relativo a atos de gestão. Ingerência do Legislativo em matéria de competência privativa do Executivo. Vedação. Arts. 37, X, e 169, § 1º, I e II, da CF/88 e arts. 5º, § 2º, 47, II, XIV, 25 e 144, todos da Constituição Paulista Ação julgada procedente. Deve ser julgada procedente ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal que abriga matéria de competência privativa do Executivo, pelo vício de iniciativa e por afrontar o princípio da separação e harmonia entre os Poderes.” (Adin 0180003-33.2012.8.26.0000. Rel. Des. Luis Ganzerla, j. 05/12/2012)

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Bertioga que autorizou o Executivo a fornecer muro de estádio municipal para publicidade - Vício de iniciativa - Lesão ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de caráter administrativo, por se referir à gestão de bens públicos - Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei 5.282/09, do Município de Bertioga.” (Adin 0053802-93.2012.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 27/06/2012)

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, que cria programa de assistência à gestante e ao recém-nascido - Vício de iniciativa - Violação ao princípio da separação de Poderes (art. 5o, da Constituição Estadual) - Ingerência na competência do Executivo, por atribuir-lhe obrigações e interferir em questões atinentes à administração pública - Ação procedente.”          (Adin 0027900-41.2012.8.26.0000. Rel. Des. Enio Zuliani, j. 12/09/2012)

“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei Municipal n. 6.988, de Guarulhos - Ato normativo que institui o programa de  equoterapia, destinado a crianças e adultos com deficiência física e/ou mental ou com distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes - Norma de iniciativa parlamentar - Programa que engloba a gestão administrativa pública - Teoria dos poderes implícitos - Criação indireta de cargos públicos na administração direta - Impossibilidade - Vício de iniciativa - Inteligência dos arts. 24, § 2o, 1, art. 47, II, e 144, da CE - Precedentes deste E. Órgão Especial e do C. STF - Despesa com remuneração não acompanhada de previsão legal e prévia dotação orçamentária - Gastos com instituição e manutenção do programa sem a correspondente indicação de receita Afronta aos arts. 25 e 169, p.ú., 1, da CE. Inconstitucionalidade reconhecida.” (Adin 0070117-02.2012.8.26.0000. Rel. Des. Grava Brasil, j. 08/08/2012)

Diante do exposto, aguarda-se seja acolhido o pedido declaratório de inconstitucionalidade.

São Paulo, 6 de agosto de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

md