Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 0088295-62.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Bertioga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito.  Lei nº 950, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, que “Institui a Semana de Prevenção e Combate à Anemia Falciforme no Município de Bertioga, e dá outras providências”.   Projeto de autoria de Vereador. Arts. 2º e 3º, que violam o princípio da separação dos poderes, com ofensa aos artigos 24, § 2º, ns. 1 e 2; 47, incs. II e XIV; e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Criação de despesas e obrigação à Administração (art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo). Parecer pela procedência parcial da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Bertioga, tendo por objeto a Lei nº 950, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga que “Institui a Semana de Prevenção e Combate à Anemia Falciforme no Município de Bertioga, e dá outras providências”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que não foi vetado pelo Chefe do Poder Executivo.

Sustenta que a lei em questão cria obrigações para a Administração, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º, 25, 47, incisos II e XIV e 144 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fl. 36).

A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 56/58).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações em defesa da constitucionalidade da norma atacada (fls. 46/52).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Ação procede, em parte.

A lei impugnada do Município de Bertioga assim dispõe:

“Art. 1º. Fica instituída a Semana de Prevenção e Combate à Anemia Falciforme no Município de Bertioga, a ser realizada anualmente na última semana do mês de maio, com início na segunda-feira e término na sexta-feira.

Parágrafo único. Esta semana passará a integrar o Calendário Oficial do Município.

Art. 2º. A Semana de que trata o artigo anterior incluirá em sua programação, para divulgação da prevenção e controle, eventos que viabilizem palestras, conferências, campanhas educativas e recreativas, exposições e projeções de filmes, visando atingir crianças e jovens.

Parágrafo único. Organizará e coordenará a programação da referida Semana, uma comissão composta por representantes da Sociedade Civil e do Poder Público Municipal.

Art. 3º. A Semana de Prevenção e Controle à Anemia Falciforme receberá o apoio dos postos de saúde fixos e volantes, e do Hospital da rede pública municipal, que tenham em seu quadro de funcionários, corpo clínico específico.

Art. 4º. O Poder Executivo regulamentará a presente lei.

Art. 5º. As despesas decorrentes desta lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias, ficando o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares e especiais se necessário.

Art. 6º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”

Primeiramente, a Carta em vigor não contém nenhuma disposição que impeça a Câmara de Vereadores de legislar sobre atividade de prevenção e combate à anemia falciforme no município, nem tal matéria foi reservada com exclusividade ao Executivo.

Por força da Constituição, os municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive sobre atividades que visam conscientizar a prevenção de doenças.

Por outro lado, eméritos Desembargadores, a matéria em questão não é de competência reservada ao Executivo.

A a Constituição em vigor nada dispôs sobre a instituição de reserva em favor do Executivo da iniciativa de leis que versem sobre programas de prevenção e combate a doenças. Como as situações previstas no art. 24, § 2º, da Carta Paulista constituem exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente, a sua interpretação deve sempre ser restritiva, máxime diante de sua repercussão no postulado básico da independência e da harmonia entre os Poderes.

Cada ente federativo dispõe de autonomia para fixar semana de programa que visa prevenir e combater doenças em geral, só havendo limites quanto à fixação de feriados, por força de legislação federal de regência, o que, porém, não ocorre na situação em análise.

Assim, com a devida vênia, não é possível recusar à Câmara de Vereadores o direito de legislar sobre assunto de interesse local e sobre o qual não paira reserva de iniciativa.

Contudo, o que até aqui restou dito não se aplica aos arts. 2º e 3º, da Lei nº 950, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, que são verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º; 24, § 2º, ns. 1 e 2; 47, incs. II e XIV; e 144 os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 – criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administra ção direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

2 – criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;”

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Como visto, as impugnadas normas criam obrigações para a Administração, ao dispor que o Município deverá promover eventos que viabilizem palestras, conferências campanhas educativas e recreativas, exposições e projeções de filmes (art. 2º e parágrafo único).

Além disso, impõe, em seu art. 3º, que participe da campanha o Hospital da rede pública municipal.

Com isso, há geração de obrigação à Administração e, consequentemente, maiores despesas, o que importa em invasão da seara administrativa.

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e da harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio do dispositivo em análise, a Câmara criou uma espécie de programa que visa conscientizar a população a respeito da segurança pública, no âmbito do Município de Bertioga, onerando, desta forma, a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da Administração Pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com o disposto no artigo 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Lei nº 950, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga.

São Paulo, 18 de julho de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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