Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 0088300-84.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Bertioga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei nº 960, de 31 de março de 2011, do Município de Bertioga, que “dispõe sobre a colocação obrigatória de adesivos educativos com o texto ‘NÃO JOGUE LIXO PELA JANELA: VAMOS MANTER A CIDADE LIMPA’ no espaço interno de todos os veículos do sistema municipal de transporte coletivo de Bertioga e dá outras providências”.

2) Lei impugnada em ADIN ajuizada pelo PGJ. Hipótese de litispendência.

3) Parecer pela extinção do processo, sem exame de mérito, nos termos do art. 276, inc. V e VI, do CPC.

4) No mérito, molesta o princípio da separação de poderes, por violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo e penetração na reserva da Administração, lei local, de iniciativa parlamentar, que institui campanha educativa em meios de execução de serviço público municipal a cargo do Poder Executivo (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XI, XIV e XIX, a, e 119, CE/89). Geração de obrigação aos prestadores de serviço público sem previsão de fonte de custeio, capaz de afetar o equilíbrio econômico-financeiro dos respectivos atos ou contratos de delegação (art. 117, CE/89) e potencialmente provocar aumento tarifário a despeito da competência do Poder Executivo (arts. 120 e 159, parágrafo único, CE/89).

4) Parecer subsidiário pela procedência da ação

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito, tendo por objeto a Lei nº 960, de 31 de março de 2011, do Município de Bertioga, que “dispõe sobre a colocação obrigatória de adesivos educativos com o texto ‘NÃO JOGUE LIXO PELA JANELA: VAMOS MANTER A CIDADE LIMPA’ no espaço interno de todos os veículos do sistema municipal de transporte coletivo de Bertioga e dá outras providências”.

Noticia-se que a lei decorre de projeto de vereador e que, por meio dela, a Câmara Municipal estaria praticando ato de gestão, incompatível com a sua vocação constitucional. De outro giro, a norma geraria despesas sem indicar os recursos disponíveis para custear o programa instituído. São indicados como violados os artigos 5º; 25; 47, II e XIV, 117 e 144 da Constituição do Estado.

A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 45/47).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 49/54).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

PRELIMINAR

Preliminarmente, há de se considerar que a lei em análise foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça em 25 de abril de 2013, que recebeu o nº 0082191-54.2013 ao ser protocolizada nesse E. Tribunal de Justiça.

Identifica-se, assim, a hipótese de litispendência, que também enseja a extinção do processo, como determinado pelo art. 267, V, do CPC.

MÉRITO

No mérito, a ação é procedente.

         A Lei n. 960, de 31 de março de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

 

“Art. 1º. Fica determinada a instalação obrigatória de adesivos educativos com o texto ‘NÃO JOGUE LIXO PELA JANELA: VAMOS MANTER A CIDADE LIMPA’, em local de alta visibilidade, no espaço interno de todos os veículos do sistema de transporte coletivo de Bertioga.

§ 1º. Os adesivos educativos de que trata a presente lei serão colocados na seguinte proporção: no mínimo 4 (quatro) adesivos em cada ônibus e no mínimo 03 (três) adesivos em cada micro-ônibus.

§ 2º. O texto educativo a que se refere o caput deste artigo deverá ser de fácil visualização com letras no mínimo 10 (dez) centímetros de altura em cor que destaque a mensagem sem que confunda o leitor no que diz respeito à cor e forma.

Art. 2º. Os prestadores do serviço público de transporte coletivo de passageiros por delegação do Poder Público, sob regime de concessão, permissão ou qualquer outra forma de contratação, terão prazo de 60 (sessenta) dias, contado do início da vigência desta lei, para colocar nos veículos empregados nessa atividade o adesivo de que ela trata.

Art. 3º. Fica delegado ao órgão de trânsito competente toda fiscalização quanto à execução da presente lei.

Art. 4º. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 5º. Esta lei será regulamentada no prazo máximo de 30 dias, contado de sua publicação.

Art. 4º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário” (fl. 41 - sic).

 

            Os dispositivos da lei municipal impugnada contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

         Os preceitos da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

 

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

 

         A Lei n. 960, de 31 de março de 2011, é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

 

“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. 

(...)
§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre: 
(...)

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

(...)

Artigo 47  Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição: 

(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual; 

(...)
XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição; 

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo; 

(...) 

XIX - dispor, mediante decreto, sobre: 

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Artigo 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

(...)

Artigo 119 - Os serviços concedidos ou permitidos ficarão sempre sujeitos à regulamentação e fiscalização do Poder Público e poderão ser retomados quando não atendam satisfatoriamente aos seus fins ou às condições do contrato. 

Parágrafo único - Os serviços de que trata este artigo não serão subsidiados pelo Poder Público, em qualquer medida, quando prestados por particulares. 
Artigo 120 - Os serviços públicos serão remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na forma que a lei estabelecer. 

(...)

Artigo 159 - A receita pública será constituída por tributos, preços e outros ingressos. 

Parágrafo único - Os preços públicos serão fixados pelo Executivo, observadas as normas gerais de Direito Financeiro e as leis atinentes à espécie”.

 

            As regras do processo legislativo federal são de observância compulsória pelos Estados e Municípios, como vem julgando reiteradamente o Supremo Tribunal Federal:

 

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

 

         Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições de órgãos e entidades da Administração direta ou indireta. Neste sentido já se decidiu:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.835/2001 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. INCLUSÃO DOS NOMES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS INADIMPLENTES NO SERASA, CADIN E SPC. ATRIBUIÇÕES DA SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA. INICIATIVA DA MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A lei 6.835/2001, de iniciativa da Mesa da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, cria nova atribuição à Secretaria de Fazenda Estadual, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

 

         A lei local além de violar os arts. 24, § 2º, 2, e 47, XI, da Constituição Estadual, por deflagrado seu respectivo processo legislativo com desprezo à reserva de iniciativa legislativa instituída em favor do Chefe do Poder Executivo, ao instituir e disciplinar campanha no serviço público executado direta ou indiretamente pelo Poder Executivo, ofendeu a reserva da Administração.

         Com efeito, também como decorrência do princípio da divisão funcional do poder, compete privativamente ao Chefe do Poder Executivo a prática de atos de gestão ordinária dos negócios públicos e a edição de normas sobre a organização e o funcionamento da Administração Pública, inclusive sobre a instituição, disciplina e execução de campanhas educativas no funcionamento dos serviços públicos municipais a cargo do Poder Executivo, como é o caso do transporte coletivo urbano. 

         Isso constitui a reserva da Administração, espaço conferido com exclusividade ao chefe do Poder Executivo, no âmbito de seu poder normativo, imune a interferências do Poder Legislativo, como se infere dos arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, e 119, da Constituição Estadual.

         O art. 47 da Constituição Estadual é dispositivo que consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo. Neste sentido já se decidiu:

 

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

“(...) 2. As restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes (...)” (STF, ADI-MC-REF 4.102-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, 26-05-2010, v.u., DJe 24-09-2010).

 

         A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal.

         Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

         Além disso, a inconstitucionalidade também fica evidenciada em razão de a lei local objurgada impor a particulares delegados de serviço público ônus que têm repercussão material no custo da atividade sem previsão de fonte de custeio.

         Isso é capaz de afetar o equilíbrio econômico-financeiro dos respectivos atos ou contratos de delegação, violando o art. 117 da Constituição Estadual, na medida em que a tarifa (preço público) fixada pelo Poder Executivo deve corresponder à remuneração pelo custo decorrente da execução delegada do serviço público.

 

         Para superação da ruptura do equilíbrio econômico-financeiro, a obrigação contida na lei municipal contestada demandará aumento tarifário, suprimindo juízo de conveniência e oportunidade da competência do Poder Executivo, tal como previsto nos arts. 120 e 159, parágrafo único, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, opino pela extinção do processo sem resolução do mérito (art. 267, inc. V e VI, do CPC) e, no mérito, pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 960, de 31 de março de 2011, do Município de Bertioga, que “dispõe sobre a colocação obrigatória de adesivos educativos com o texto ‘NÃO JOGUE LIXO PELA JANELA: VAMOS MANTER A CIDADE LIMPA’ no espaço interno de todos os veículos do sistema municipal de transporte coletivo de Bertioga e dá outras providências”.

 

São Paulo, 17 de julho de 2013.

                                    

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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