Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0089419-80.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Lorena

Requerida: Câmara Municipal de Lorena

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada por Prefeito, em face da Emenda à Lei Orgânica nº 06, de 26 de abril de 2010. Alteração da licença remunerada à gestante. Vício de iniciativa por regulamentar matéria de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Usurpação das atribuições do Prefeito, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (arts. 5º e 24, § 2º, “4”, da CE). Art. 24, § 2º, “4”, aplicável aos municípios em obediência ao princípio da simetria (art. 144 da CE). Parecer pela procedência da ação direta.

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Lorena, tendo por objeto a Emenda à Lei Orgânica nº 06, de 26 de abril de 2010, do Município de Lorena, que altera a licença remunerada à gestante.

O autor pleiteia a declaração de inconstitucionalidade sob a alegação de vício de iniciativa e, portanto, ofensa ao disposto no art. 24, § 2º, “4”, da Constituição Estadual.

O pedido de liminar foi indeferido (fl. 33), após a determinação para emenda da inicial (fl. 22).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 52/56), vislumbrando a inconstitucionalidade apontada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da norma impugnada, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 42/44).

Este é o breve resumo do que consta dos autos. A ação é procedente.

A Emenda impugnada apresenta a seguinte redação:

                                                                      Art. 1º. O inciso XI do artigo 104 da Lei Orgânica do Município, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘XI – Licença remunerada à gestante, sem prejuízo do emprego e do solário com a duração de 180 (cento e oitenta) dias, bem como licença paternidade, nos termos fixados em lei.

‘a’ – o benefício deste inciso será aplicado também às servidoras municipais que judicialmente, adotarem filho.

‘b’ – a contagem dos 180 (cento e oitenta) dias iniciará a partir da data do pedido de afastamento solicitado pelo obstetra e referendado pelo médico do trabalho. No caso de adoção, a contagem do prazo se iniciará a partir da data da sentença transitada em julgado’.

 Art. 2º. Esta Emenda Lei Orgânica passa a vigorar na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

Como se depreende do texto normativo impugnado, a Emenda versa sobre o regime jurídico dos funcionários municipais, cuja iniciativa é exclusiva do Chefe do Poder Executivo.

Por isso, em que pesem os elevados propósitos que inspiraram os parlamentares, o diploma normativo impugnado é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º, 24, § 2º, “4” e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria.

(...)

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A matéria de que trata a lei em análise – regime jurídico dos servidores públicos – é daquelas cuja iniciativa cabe ao Prefeito.

Com efeito, a disciplina normativa pertinente ao regime jurídico dos servidores públicos, incluindo a concessão de benefícios, é matéria que, em razão de sua essência, insere-se na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

Esse entendimento tem o respaldo de maciça jurisprudência:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.065, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1999, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, QUE DÁ NOVA REDAÇÃO À LEI 4.861, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1993. ART. 4º E TABELA X QUE ALTERAM OS VALORES DOS VENCIMENTOS DE CARGOS DO QUADRO PERMANENTE DO PESSOAL DA POLÍCIA CIVIL. INADMISSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. OFENSA AO ART. 61, § 1º, II, A e C, da CF. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. ADI JULGADA PROCEDENTE. I - É da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. II - Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio simetria. III - Ação julgada procedente” (STF, ADI 2.192-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 04-06-2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 792, DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO QUE ALTERA PRECEITO DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS ESTADUAIS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO LEGISLATIVO ESTADUAL. PROJETO DE LEI VETADO PELO GOVERNADOR. DERRUBADA DE VETO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno [artigo 25, caput], impõe a observância obrigatória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Precedentes. 2. O ato impugnado versa sobre matéria concernente a servidores públicos estaduais, modifica o Estatuto dos Servidores e fixa prazo máximo para a concessão de adicional por tempo de serviço. 3. A proposição legislativa converteu-se em lei não obstante o veto aposto pelo Governador. O acréscimo legislativo consubstancia alteração no regime jurídico dos servidores estaduais. 4. Vício formal insanável, eis que configurada manifesta usurpação da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo [artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘c’, da Constituição do Brasil]. Precedentes. 5. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei Complementar n. 792, do Estado de São Paulo” (STF, ADI 3.167-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 18-06-2007, v.u., DJ 06-09-2007, p. 36).

Dessa orientação não destoa a doutrina:

“As referidas matérias cuja discussão legislativa depende da iniciativa privativa do Presidente da República (CF, art. 61, § 1º) são de observância obrigatória pelos Estados-membros que, ao disciplinar o processo legislativo no âmbito das respectivas Constituições estaduais, não poderão afastar-se da disciplina constitucional federal.

Assim, por exemplo, a iniciativa reservada das leis que versem o regime jurídico dos servidores públicos revela-se, enquanto prerrogativa conferida pela Carta Política ao Chefe do Poder Executivo, projeção específica do princípio da separação dos poderes, incidindo em inconstitucionalidade formal a norma inscrita em Constituição do Estado que, subtraindo a disciplina da matéria ao domínio normativo da lei, dispõe sobre provimento de cargos que integram a estrutura jurídico-administrativa do Poder Executivo local” (Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 646).

Esse panorama conduz à ofensa ao princípio basilar da separação de poderes, pois, no dizer desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Em suma, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Emenda à Lei Orgânica nº 06, de 26 de abril de 2010, do Município de Lorena.

São Paulo, 23 de setembro de 2013.

 

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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