Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0090631-39.2013.8.26.0000

Requerente: SINDICATO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES DE PASSAGEIROS DO ESTADO DE SÃO PAULO – SETPESP

Requeridos: Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

                            Ementa:

           

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 11.319, de 26 de abril de 2.013, do Município de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que “Proíbe aos motoristas de ônibus do transporte coletivo urbano a prática de atividades inerentes à função de cobrador”.

2)      Inconstitucionalidade. Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura da adequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão (art. 25 da Constituição Estadual). 

3)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo - SETPESP, tendo como alvo a Lei nº 11.319, de 26 de abril de 2.013, do Município de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que “Proíbe aos motoristas de ônibus do transporte coletivo urbano a prática de atividades inerentes à função de cobrador”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por: apresentar vício de competência e de iniciativa; implicar a intromissão do Legislativo na gestão do sistema urbano de transportes, a qual compete ao Executivo; tratar de matéria (condições de trabalho) de competência privativa da União; tratar de matéria típica da organização e regulamentação de serviço público. Daí a afirmação de violação dos arts. 5º, § 1º; 25; 47, XI e XVII e 144 da Constituição Estadual.

Foi deferida a liminar para suspender, com efeitos ex nunc, a vigência e eficácia da Lei nº 11.319, de 26 de abril de 2.013, do Município de São José do Rio Preto (fls. 675/677).

O Sindicato dos Condutores de Veículos Rodoviários e Anexos de São José do Rio Preto foi admitido no processo na condição de amicus curiae.

Citado regularmente (fl. 797), o Senhor Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 799/801).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações às fls. 767/771.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 11.319, de 26 de abril de 2.013, do Município de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que “Proíbe aos motoristas de ônibus do transporte coletivo urbano a prática de atividades inerentes à função de cobrador”, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, com a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Proíbe-se aos motoristas de veículos do transporte coletivo urbano, em toda a área do Município, a prática de atividades inerentes à função de cobrador.

Parágrafo único – São atividades inerentes à função de cobrador:

1- cobrança das passagens aos usuários;

2- orientar a utilização pelos usuários dos cartões magnéticos com créditos de passagens;

3- apuração da arrecadação, efetuando levantamento das férias do período e apresentação do montante obtido à empresa;

4- operacionalização do sistema de ajuda técnica para a pessoa com deficiência física e/ou com mobilidade reduzida, bem como qualquer auxílio às mesmas;

5- qualquer outra elencada pela Classificação Brasileira de Operações.

Art. 2º - Fica revogada, em todos os seus termos, a Lei nº 8.232, de 06 de dezembro de 2000.

(...)”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A forma e condições de prestação do serviço público, seja de forma direta ou indireta, como é o caso do transporte coletivo de passageiros realizado no Município de São José do Rio Preto, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre, invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da proibição imposta aos motoristas de ônibus de exercerem simultaneamente a função de cobrador nas empresas concessionárias do serviço de transporte coletivo do Município de São José do Rio Preto, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

 De outro lado, acabou estipulando a obrigação às empresas concessionárias do serviço de transporte coletivo do Município de manter sempre dois tripulantes em cada veículo, sendo um motorista e um cobrador. Dessa forma, a Câmara Municipal alterou o próprio regime de concessão ou de permissão de serviços públicos e dispôs de maneira autônoma sobra matéria de competência privativa do Poder Executivo, contrastando com o princípio da separação dos poderes insculpido no art. 5º da Constituição Estadual.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao regular condições da prestação de um serviço público municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

O ato normativo impugnado importa em modificação das condições da prestação do serviço público que teve no processo de licitação a definição precisa de seu objeto.

Assim, alteradas as condições da prestação do serviço concedido, haveria obrigatoriedade da adequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, não tendo sido indicados especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na prestação do serviço público concedido, não servindo para tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Vale ressaltar que esse Colendo Órgão Especial já se pronunciou a respeito da matéria. Senão vejamos:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VÍCIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de membro do Poder Legislativo que dispõe sobre a impossibilidade de motoristas de ônibus exercerem simultaneamente a função de cobrador nas empresas de transporte coletivo. Matéria relativa à prestação de serviço público e de cunho eminentemente administrativo ou de função típica da Administração Pública. Matéria que é de iniciativa do chefe do Poder Executivo. Ofensa aos arts. 5°, "caput" e 47, II, XIV e XVIII e art. 144 todos da CESP e arts. 2o, 61, § Io, II, "b" e 84, II, todos da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADIN n° 0503048-61.2010, Rel. Des. Mac Cracken, j. 25 de maio de 2011)

Diante do exposto, aguarda-se que seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 11.319, de 26 de abril de 2013, do Município de São José do Rio Preto.

São Paulo, 19 de julho de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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