Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0093658-30.2013.8.26.0000

Requerente: Associação Brasileira de Shopping Centers - ABRASCE

Requeridos: Prefeito e Câmara Municipal de São Paulo

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Leis n. 10.947, de 22 de janeiro de 1991, e n. 11.649, de 14 de setembro de 1994, e Decreto n. 29.728, de 08 de maio de 1991, do Município de São Paulo. Preliminares. Saneamento da representação processual. Admissibilidade do contencioso de constitucionalidade de atos normativos municipais em face de norma constitucional estadual remissiva à Constituição Federal. Ilegitimidade ativa. Caráter heterogêneo da representação de classe da associação de âmbito nacional, e não estadual. Obrigação aos shoppings centers de implantação de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro para atendimento de emergência, com médico e ambulância, sob pena de recusa da expedição de alvará de funcionamento. 1. Ainda que saneada a representação processual, a associação de classe de âmbito nacional não tem legitimidade ativa para o contencioso de constitucionalidade de atos normativos municipais contrastados em face da Constituição Estadual à luz do art. 90, V, CE/89, que só legitima entidades de âmbito estadual ou municipal, não bastasse a heterogeneidade da própria representação associativa. 2. Extinção do processo sem resolução do mérito. 3. Admissibilidade do contraste de lei municipal em face de norma constitucional estadual remissiva da Constituição Federal para exibição da incompatibilidade com seus princípios (arts. 1º e 144, CE/89). 4. Não vulnera competência normativa alheia nem os princípios de razoabilidade e da liberdade de iniciativa econômica norma municipal de polícia administrativa que, atendendo aos limites da autonomia municipal, compele, sob pena de recusa do alvará de funcionamento, estabelecimentos comerciais como shopping center à implantação de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro para atendimento de emergência, provido de médico e ambulância. 5. Longe de significar transmissão de obrigação do poder público ao particular, a medida visa à proteção da saúde do consumidor.

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando as Leis n. 10.947, de 22 de janeiro de 1991, e n. 11.649, de 14 de setembro de 1994, e o Decreto n. 29.728, de 08 de maio de 1991, do Município de São Paulo, que obrigam shoppings centers à implantação de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro para atendimento de emergência, provido de médico e ambulância, sob pena de negativa da expedição de alvará de funcionamento, por alegação de incompatibilidade com os arts. 22, XXIII, 30, I e II, 170, 174 e 199 da Constituição Federal e aos arts. 1º, 218, 219, 220, §§ 2º e 3º da Constituição Estadual (fls. 02/37).

2.                Indeferida a liminar (fls. 290/291), foi juntado o mandato (fls. 296/304).

3.                A Câmara Municipal de São Paulo prestou informações alegando preliminares de ilegitimidade ativa e irregularidade da representação processual e impossibilidade jurídica do pedido e, no mérito, defendeu a constitucionalidade dos atos normativos invocando a legislação estadual superveniente (Lei n. 9.791/97 e Decreto n. 11.218/02) e sua conformação com os arts. 5º, XXXII, 30, I e II e 170 da Constituição Federal (fls. 332/359).

4.                O douto Procurador-Geral do Estado suscita ilegitimidade ativa e sustenta a constitucionalidade lastreado nos arts. 23, II, 24, V e XII, §§ 1º a 4º, 30, I e II, da Constituição Federal, e nos arts. 217 a 220 da Constituição Estadual (fls. 412/431).

5.                O Prefeito do Município de São Paulo refuta a pretensão, arrimado nos arts. 30, VIII e 182 da Constituição Federal (fls. 435/441).

6.                É o relatório.

7.                A irregularidade da representação processual da requerente foi sanada com a juntada posterior de mandato, como acima reportado.

8.                A preliminar de impossibilidade jurídica do pedido não vinga porque a requerente invoca violação à Constituição Federal por força da norma remissiva constante do art. 1º da Constituição Estadual que encampa a repartição de competências normativas decorrente do princípio federativo.

9.                Ademais, a tanto converge o art. 144 da Constituição Estadual, igualmente norma remissiva aos seus preceitos e aos da Constituição Federal, no condicionamento da autonomia municipal, reproduzindo o caput do art. 29 da Carta Magna de 1988.

10.              Nesse caso, a incompatibilidade vertical arguida é em face da norma remissiva da Constituição Estadual, não havendo espaço para se cogitar de contraste direto de lei municipal com a Constituição Federal.

11.              Neste sentido, pronuncia a jurisprudência (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010), valendo destacar a seguinte decisão:

“Trata-se de medida liminar em reclamação constitucional ajuizada pela Câmara Municipal de São Paulo em face de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na ação direta de inconstitucionalidade 0019255-27.2012.8.26.0000.

    Na decisão reclamada, o relator do feito, desembargador Ênio Zuliani, deferiu liminar para suspender a eficácia da Resolução 6/2011 da Câmara Municipal de São Paulo.

    O ato normativo impugnado na ação direta mencionada trata da fixação dos subsídios dos vereadores para a legislatura a se iniciar em 2013. Nos dispositivos questionados na ADI estadual, a Resolução 6/2011 prevê pagamento de décimo terceiro salário a vereadores (art. 2º), estabelece correção monetária do subsídio, no mês de março, pelo índice aplicável aos servidores da Câmara Municipal de São Paulo (art. 3º), atualiza o subsídio atualmente pago aos vereadores, desde março de 2011, no percentual de 22,67% (art. 4º) e dispõe que, caso não seja editada nova resolução para fixar os subsídios para a legislatura subsequente, deverá ser utilizado, como referência, o valor do subsídio previsto na própria Resolução 6/2011, aplicando-se-lhe a correção monetária na forma prevista no art. 3º (art. 5º).

    A presente reclamação sustenta que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não possui competência para julgar a ação direta contra a Resolução 6/2011.

    A reclamante argumenta que os dispositivos constitucionais estaduais mencionados na ação direta não sustentariam a declaração da inconstitucionalidade da Resolução 6/2011. Segundo a Câmara Municipal de São Paulo, a constitucionalidade do ato regulamentar impugnado só poderia ser infirmada mediante o cotejo direto com dispositivos constitucionais federais. Entre os parâmetros de controle deveriam estar, de acordo com a reclamante, os arts. 39, parágrafos 3º e 4º; 37, inc. X; 39, § 4 º e o art. 29, inc. VI, todos da Constituição federal.

    Depois de mencionar precedentes desta Corte a respeito da incompetência das cortes estaduais para julgar ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, a Câmara Municipal de São Paulo requer o deferimento da liminar para suspender o andamento da ADI estadual 0019255-27.2012.8.26.0000.

    No mérito, a reclamante pleiteia a extinção da ação direta estadual, sem julgamento do mérito, em virtude do reconhecimento definitivo da incompetência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para processar e julgar aquele feito.

    As informações enviadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo dão conta de que o relator da ADI estadual conheceu e deu provimento a embargos de declaração opostos naqueles autos para esclarecer que a suspensão da eficácia da Resolução 6/2011 restringe-se aos dispositivos impugnados naquela ação direta (arts. 2º, 3º, 4º e 5º), não atingindo, portanto, a íntegra do ato normativo (pet. 25.418/2012).

    É o relatório.

    Decido o pedido de liminar.

    Como visto, a argumentação da reclamante é no sentido de que a ação direta de inconstitucionalidade estadual não poderia ser apreciada sem que fosse realizado o cotejo direto entre a norma questionada – Resolução 6/2011 da Câmara Municipal de São Paulo – e os artigos 39, parágrafos 3º e 4º, 37, inciso X, e 29, inciso VI, da Constituição federal. A utilização do parâmetro federal teria como condão o reconhecimento da incompetência da corte estadual para julgar a ação, na esteira da jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal sobre o alcance do § 2º do art. 125 da Constituição.

    A leitura da petição inicial da ADI estadual parece afastar as alegações da reclamante.

    É que, aparentemente, o Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, autor da ação direta 0019255-27.2012.8.26.0000, sustentou cada uma das três violações constitucionais apontadas em dispositivos da constituição estadual paulista.

    No ponto relativo à inadmissibilidade de pagamento de décimo terceiro subsídio, a leitura da petição inicial revela a preponderância, como parâmetro de controle, do art. 124, § 3º, da constituição estadual, dispositivo que reproduz o art. 39, § 3 º, da Constituição federal.

    No que se refere à proibição da vinculação dos subsídios dos vereadores aos ganhos salariais dos servidores públicos, o parâmetro de controle sugerido é o art. 115, inciso XV, da constituição estadual, o qual reproduz, por sua vez, o art. 37, XIII, da Constituição federal.

    No que tange à observância do princípio da anterioridade e à impossibilidade de modificação do subsídio no curso da legislatura, bem como à impossibilidade de revisão automática de valores na ausência de promulgação de ato normativo, a petição inicial vale-se do parâmetro do art. 144 da constituição estadual, o qual remete à Constituição federal, mais especificamente inciso VI do art. 29.

    Os parâmetros de controle utilizados na ADI estadual incluem, portanto, normas constitucionais estaduais que reproduzem e/ou fazem remissão a normas constitucionais federais de observância obrigatória. Os ministros deste Supremo Tribunal Federal, ao se depararem com situações análogas, têm entendido que não há impedimento ao processamento e julgamento de ações diretas pelos tribunais de justiça estadual. Transcrevo, a título de exemplo, a ementa do acórdão proferido no julgamento, pelo Pleno, do agravo regimental na Rcl 10.500, rel. min. Celso de Mello, DJe 29.09.2011:

    RECLAMAÇÃO - FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DO INSTRUMENTO RECLAMATÓRIO (RTJ 134/1033 - RTJ 166/785) - COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA PARA EXERCER O CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEIS E ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS CONTESTADOS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - A ‘REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE’ NO ÂMBITO DOS ESTADOS-MEMBROS (CF, ART. 125, § 2º) - A QUESTÃO DA PARAMETRICIDADE DAS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS, DE CARÁTER REMISSIVO, PARA FINS DE CONTROLE CONCENTRADO DE LEIS E ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS CONTESTADOS, PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - DOUTRINA - PRECEDENTES - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

    - O único instrumento jurídico revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização concentrada de constitucionalidade de lei ou de atos normativos estaduais e/ou municipais, é, tão-somente, a Constituição do próprio Estado-membro (CF, art. 125, § 2º), que se qualifica, para esse fim, como pauta de referência ou paradigma de confronto, mesmo nos casos em que a Carta Estadual haja formalmente incorporado, ao seu texto, normas constitucionais federais que se impõem à observância compulsória das unidades federadas. Doutrina. Precedentes.

    - Revela-se legítimo invocar, como referência paradigmática, para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e/ou municipais, cláusula de caráter remissivo, que, inscrita na Constituição Estadual, remete, diretamente, às regras normativas constantes da própria Constituição Federal, assim incorporando-as, formalmente, mediante referida técnica de remissão, ao plano do ordenamento constitucional do Estado-membro.

    - Com a técnica de remissão normativa, o Estado-membro confere parametricidade às normas, que, embora constantes da Constituição Federal, passam a compor, formalmente, em razão da expressa referência a elas feita, o ‘corpus’ constitucional dessa unidade política da Federação, o que torna possível erigir-se, como parâmetro de confronto, para os fins a que se refere o art. 125, § 2º da Constituição da República, a própria norma constitucional estadual de conteúdo remissivo. Doutrina.

Precedentes.

    Ainda nessa linha, menciono: Rcl 383, rel. min. Moreira Alves, Pleno, DJ 21.05.1993; RE 199.293, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, DJ 06.08.2004; Rcl 4.432, rel. min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, DJ 10.10.2006; RE 598.016-AgR, rel. min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 12.11.2009, Rcl 10.406, rel. min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, DJe 06.09.2010.

    Ante o exposto, indefiro a liminar. (...)” (STF, Rcl-MC 13.383-SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 23-05-2012, DJe 28-05-2012).

12.              Passo ao exame da preliminar de ilegitimidade ativa.

13.              A Constituição Estadual confere legitimidade para promoção da ação direta de inconstitucionalidade às entidades sindicais ou de classe, de atuação estadual ou municipal, demonstrando seu interesse jurídico no caso, no inciso V do artigo 90.

14.              A douta Procuradoria-Geral do Estado põe em discussão a representação de classe da requerente, louvando precedente (fls. 416/417) em que a ilegitimidade da requerente foi reconhecida (STF, ADI 49-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 04-10-2001, DJ 11-10-2001, p. 22) em razão de sua composição heterogênea. Esse entendimento vem recebendo prestígio:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 1º DA RESOLUÇÃO N. 51/98/CONTRAN. 1. Ilegitimidade ativa da autora, entidade que não reúne a qualificação constitucional prevista no art. 103, inc. IX, da Constituição da República. 2. A heterogeneidade da composição da Autora, conforme expressa disposição estatutária, descaracteriza a condição de representatividade de classe de âmbito nacional: Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade não conhecida” (RTJ 201/909).

15.              E melhor refletindo a questão, entidade de classe de âmbito nacional não tem legitimidade ativa para o contencioso de constitucionalidade de lei municipal contrastado em face da Constituição Estadual, porque a dimensão participativa da abertura da legitimidade ativa para a ação direta de inconstitucionalidade sopesa a defesa da supremacia da Constituição Estadual. Ora, o caráter nacional da associação tem a potencialidade de amparo de interesses conflitantes em razão da diversidade de conteúdo das Constituições dos vários Estados-membros cuja colisão é possível.

16.              Por isso, opino pela extinção do processo sem resolução do mérito amparando nesses motivos a ilegitimidade ativa.

17.              No mérito, insisto na convicção externada em precedente ocasião (ADI 0062282-60.2012.8.26.0000).

18.              Acrescento que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que em matéria de saúde o Município tem competência normativa que, todavia, não pode ultrapassar os limites da legislação federal e estadual:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMERCIALIZAÇÃO DE ÁGUA MINERAL. LEI MUNICIPAL. PROTEÇÃO E DEFESA DA SAÚDE. COMPETÊNCIA CONCORRENTE. INTERESSE LOCAL. EXISTÊNCIA DE LEI DE ÂMBITO NACIONAL SOBRE O MESMO TEMA. CONTRARIEDADE. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A Lei Municipal n. 8.640/00, ao proibir a circulação de água mineral com teor de flúor acima de 0, 9 mg/l, pretendeu disciplinar sobre a proteção e defesa da saúde pública, competência legislativa concorrente, nos termos do disposto no art. 24, XII, da Constituição do Brasil. 2. É inconstitucional lei municipal que, na competência legislativa concorrente, utilize-se do argumento do interesse local para restringir ou ampliar as determinações contidas em texto normativo de âmbito nacional. Agravo regimental a que se nega provimento” (RT 892/119).

19.              Trata-se do exercício da polícia administrativa sobre o comércio local, matéria de âmbito municipal típico e ordinário, impondo deveres a particulares visando à proteção da saúde do consumidor, e cuja dúvida de sua constitucionalidade foi posteriormente superada pela edição da Lei Estadual n. 9.791, de 30 de setembro de 1997, e que não ultrapassa os limites consignados à autonomia municipal, não se vislumbrando ofensa aos princípios da razoabilidade e da liberdade de iniciativa econômica nem significa transmissão de obrigação do poder público ao particular, caracterizando, isto sim, medida compatível com o afluxo de grande contingente humano a estabelecimento comercial aberto ao público.

20.              Opino, preliminarmente, pela rejeição das preliminares e acolhimento da preliminar de ilegitimidade ativa para extinção do processo sem resolução do mérito, e, se superada, pela improcedência da ação.

                   São Paulo, 11 de setembro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

wpmj