Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0095320-29.2013.8.26.0000

Requerente: Ordem dos Advogados do Brasil - São Paulo

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Vargem Grande Paulista

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Art. 3º da Lei Complementar n. 006, de 09 de janeiro de 2002, do Município de Vargem Grande Paulista. Dispositivo que parcela o pagamento dos honorários advocatícios de acordo com o número de prestações do eventual pagamento da dívida tributária ajuizada.

2)      Preliminarmente se faz necessária a notificação do Prefeito Municipal de Vargem Paulista para prestar informações.

3)   Mérito. Violação da regra da reserva de iniciativa (art. 24, § 2º, n. 1 e 4, da Constituição Paulista), bem como da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV), aplicáveis aos Municípios como princípios estabelecidos (art. 144 da Constituição Paulista).

4)   Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo, tendo como alvo o art. 3º da Lei Complementar n. 006, de 09 de janeiro de 2002, do Município de Vargem Grande Paulista, que “dispõe sobre a alteração da legislação tributária municipal e dá outras providências”.

Sustenta a inicial a inconstitucionalidade da referida lei, pelas seguintes razões: (a) vício de iniciativa; (b) violação ao princípio da independência e da harmonia entre os poderes. Aponta assim para a contrariedade ao que está disposto na Constituição do Estado, nos seguintes dispositivos: art. 5º; art. 24, § 2º, 1 e 4; art. 47 II e XIV; art. 115; art. 124; art. 128; art. 144; art. 174 e art. 176.

Argumenta também ter sido violado o art. 77 da Lei Orgânica do Município.

Não foi concedida a liminar (fl. 135).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato impugnado (fls. 150/153).

A Câmara Municipal deixou de prestar informações (fl. 154).

É o relato do essencial.

         Preliminarmente se faz necessária a notificação do Prefeito Municipal de Vargem Paulista para prestar informações.          

         No mérito, insta observar ser inadmissível o contraste da norma municipal impugnada com outro parâmetro para além da Constituição Estadual, salvo quando reproduza, imite ou remeta a preceito da Constituição Federal (ou se trate de norma de observância obrigatória), nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

         Qualquer alegação fundada em norma infraconstitucional, como a Lei Orgânica do Município, não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).

Feitas essas considerações, a Lei Complementar n. 006, de 09 de janeiro de 2002, do Município de Vargem Grande Paulista, de iniciativa parlamentar, “dispõe sobre a alteração da legislação tributária municipal e dá outras providências”.

O art. 3º da referida lei apresenta a seguinte redação:

‘Art. 3º - Passa a ter a seguinte redação o §1º, do art. 235 da Lei Complementar 01/93:

“§1º - Ajuizada a dívida tributária, são devidos, também, custas processuais e honorários advocatícios, que arbitrados conforme a lei, serão divididos pelo número de parcelas do eventual parcelamento da dívida’”.

Como se pode observar, o dispositivo impugnado permite que os honorários advocatícios sejam parcelados de acordo com o número de prestações do eventual parcelamento da dívida tributária municipal ajuizada.

Não parece ser viável negar, portanto, que se trata de caso em que lei municipal de iniciativa de parlamentar alterou um aspecto fundamental do regime jurídico de determinada categoria de servidor municipal, qual seja, a dos ocupantes do cargo efetivo de procurador jurídico do Município.

Nesse contexto, de fato, assenta-se a razão dos argumentos utilizados na inicial, no sentido de que se verificou tanto o vício em razão da usurpação da iniciativa reservada para projetos de lei referentes ao regime jurídico dos servidores públicos (art. 24, § 2º, n. 1 e 4, da Constituição Paulista; reprodução do art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição da República), bem como, paralelamente, desrespeito ao princípio da independência e harmonia entre os poderes (art. 5º da Constituição Paulista; art. 2º da Constituição da República), aplicáveis aos Municípios por expressa disposição constitucional (art. 144 da Constituição do Estado; art. 29, caput da Constituição da República).

Isso torna a lei nitidamente incompatível com a ordem constitucional.

Quanto à iniciativa reservada do Chefe do Executivo para projetos de lei que tratem do regime jurídico e remuneração de servidores públicos, confira-se a posição do Colendo STF, conforme julgados aplicáveis ao caso mutatis mutandis:

“(...)

‘Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 6.065, de 30-12-1999, do Estado do Espírito Santo, que dá nova redação à Lei 4.861, de 31-12-1993. Art. 4º e tabela X que alteram os valores dos vencimentos de cargos do quadro permanente do pessoal da polícia civil. Inadmissibilidade. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, a e c, da CF. Observância do princípio da simetria. ADI julgada procedente. É da iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio da simetria.’ (ADI 2.192, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4-6-2008, Plenário, DJE de 20-6-2008.)

‘Inconstitucionalidade dos arts. 41, 42, 43 e seu parágrafo único, 44, 45 e seu parágrafo único, do ADCT da Constituição da Paraíba, porque ofendem a regra da iniciativa reservada ao chefe do Poder Executivo quanto à majoração de vencimentos dos servidores públicos (CF, art. 61, § 1º, II, a).’ (ADI 541, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 10-5-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007.)

(...)”

Ademais, é ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Nesse sentido, o diploma impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de gestão, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação. Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 3º da Lei Complementar n. 006, de 09 de janeiro de 2002, do Município de Vargem Grande Paulista, que “dispõe sobre a alteração da legislação tributária municipal e dá outras providências”.

 

São Paulo, 8 de outubro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

vlcb