Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

 

Processo n. 0097453-44.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Sorocaba

Requerida: Câmara Municipal de Sorocaba

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.  Lei n. 10.419, de 03 de abril de 2013, do Município de Sorocaba. Limite do contencioso de constitucionalidade de lei municipal. Criação de órgão público. Separação de poderes. Iniciativa legislativa parlamentar. Procedência. 1. No contencioso de constitucionalidade, não merece cognição alegação de incompatibilidade da lei impugnada com a Lei Orgânica Municipal, sem prejuízo do exame de incompatibilidade a norma de observância obrigatória da CF/88 (art. 125, § 2º, CF/88). 4. Lei local, de iniciativa parlamentar, que cria o Hospital Municipal de Sorocaba, viola o princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; e 47, II, XIV e XIX, a, CE/89). 5. Procedência da ação.

 

 

 

Egrégio Tribunal:

 

 

1.                 Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Sorocaba impugnando a Lei n. 10.419, de 03 de abril de 2013, de iniciativa popular, que cria o Hospital Municipal de Sorocaba, sob alegação de ofensa ao princípio da separação de poderes, com violação aos indicados dispositivos da Constituição Federal, Constituição do Estado de São Paulo e da Lei Orgânica do Município de Sorocaba.

2.                Câmara Municipal de Sorocaba prestou informações (fls. 167/174) e a douta Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa da norma impugnada (fls. 162/164).

3.                É o relatório.

4.                Preliminarmente opino pela carência parcial da ação.

5.                Insuscetível é o amparo de alegação de afronta à Lei Orgânica do Município, como alegado, pois o contencioso de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, ainda que remissiva ou reprodutora da Constituição Federal (art. 125, § 2º, Constituição Federal).

6.                Destarte, qualquer alegação de incompatibilidade com a Lei Orgânica Municipal ou com leis infraconstitucionais não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).

7.                Feito esse registro imprescindível, afigura-se possível a sindicância da constitucionalidade da lei tomando como base preceito da Constituição Federal de observância obrigatória (art. 84, VI, a), que é reproduzido no art. 47, XIX, a, da Constituição Estadual.

8.                Em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

9.                A criação e atribuição de órgãos do Poder Executivo é matéria da reserva de iniciativa legislativa de seu Chefe, como proclama pacífica jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.835/2001 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. INCLUSÃO DOS NOMES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS INADIMPLENTES NO SERASA, CADIN E SPC. ATRIBUIÇÕES DA SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA. INICIATIVA DA MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A lei 6.835/2001, de iniciativa da Mesa da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, cria nova atribuição à Secretaria de Fazenda Estadual, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

III - Independência e Separação dos Poderes: processo legislativo: iniciativa das leis: competência privativa do Chefe do Executivo. Plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade de expressões e dispositivos da lei estadual questionada, de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos específicos da Administração Pública, criação de cargos e funções públicos e estabelecimento de rotinas e procedimentos administrativos, que são de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (CF, art. 61, § 1º, II, e), bem como dos que invadem competência privativa do Chefe do Executivo (CF, art. 84, II)” (STF, ADI-MC 2.405-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, 06-11-2002, DJ 17-02-2006, p. 54).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE ORIGEM PARLAMENTAR. ORGANIZAÇÃO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. As regras previstas na Constituição Federal para o processo legislativo aplicam-se aos Estados-membros. Compete exclusivamente ao Governador a iniciativa de leis que cuidem da estruturação e funcionamento de órgãos vinculados ao Poder Executivo (CF, artigos 61, § 1º, II, ‘e’; e 144, § 6º). Precedentes. Inconstitucionalidade da Lei 10890/01, do Estado de São Paulo. Ação julgada procedente” (STF, ADI 2646-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 23-05-2003, p. 30).

10.              Destarte, a iniciativa popular da lei local violou a reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo constante do art. 24, § 2º, 2, da Constituição Estadual, que reproduz o art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, e é aplicável aos municípios por força do art. 144 da Constituição do Estado e do art. 29 da Constituição da República.

11.              Além disso, ela afronta a reserva da Administração, espaço conferido com exclusividade ao Chefe do Poder Executivo no âmbito de seu poder normativo imune a interferências do Poder Legislativo, porque se radica na gestão ordinária dos negócios públicos, como se infere dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual, aplicáveis na esfera municipal por força de seu art. 144 e do art. 29, caput, da Constituição Federal – que reproduzem os arts. 2º e 84, II e VI, a, da Constituição Federal.

12.              O art. 47 da Constituição Estadual é dispositivo que consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo, como é o caso da organização da Administração Pública, definindo competências a seus órgãos. Neste sentido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

13.              Face ao exposto, opino pela procedência da ação pela incompatibilidade da Lei n. 10.419, de 03 de abril de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa popular, que cria o Hospital Municipal, com os arts. 5º; 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

 

                                  São Paulo, 26 de julho de 2013.

 

 

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

fjyd