Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0102921-23.2012.8.26.0000

Requerente: Associação Paulista de Supermercados (APAS)

Requerido: Prefeito e Câmara do Município de Franca

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 7.649, de 17 de abril de 2012, de Franca, que, nos termos da respectiva rubrica: “Dispõem sobre fornecimento gratuito de sacolas descartáveis para acondicionamento de produtos adquiridos em supermercados, hipermercados e congêneres e dá outras providências”.

2)      Defesa do consumidor e do Meio Ambiente como princípios constitucionais da atividade econômica (art. 170, V e VI da CR). Legislação municipal editada para atender ao interesse local, suplementando a legislação da União e do Estado relativa à proteção do meio ambiente e ao consumidor (art. 30, I e II da CR). Competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre proteção ao meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI da CR). Competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para cuidar da saúde, proteger o meio ambiente e combater a poluição (art. 23, II, VI e VII). Incumbência do Poder Público, em todas as suas esferas, de controlar a produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225, § 1º, V da CR/88).

3)      Obrigação de disponibilizar funcionários para empacotar mercadorias. Violação dos arts. 21, I e 24 da Constituição Federal e dos arts. 1º e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

4)   Inconstitucionalidade parcial.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação Paulista de Supermercados (APAS), tendo como alvo a Lei Municipal nº 7.649, de 17 de abril de 2012, de Franca, que, conforme respectiva rubrica “Dispõem sobre fornecimento gratuito de sacolas descartáveis para acondicionamento de produtos adquiridos em supermercados, hipermercados e congêneres e dá outras providências”.

Sustenta que foi usurpada a competência do legislador federal e do legislador estadual para a regulamentação de matéria relativa ao consumo e defesa do meio ambiente, advindo daí a inconstitucionalidade da lei impugnada. Argumenta, ainda, usurpação de competência da União para legislar sobre normas relativas a relações do trabalho. Aponta, assim, contrariedade aos arts. 5º, 25, 47, II e XI, 111, 144, 152, IV e 193, XX e XXI e 273 da Constituição do Estado de São Paulo e art. 22, I, 24, § 2º e 3º, da Constituição Federal.

A liminar foi concedida suspendendo-se a eficácia da lei impugnada (fls. 129/136).

Contra tal decisão interpôs a Câmara Municipal de Franca agravo regimental (fls. 143/146), ao qual foi negado provimento (fls. 199/210).

Citado regularmente (fls. 222), o Procurador Geral do Estado afirmou tratar de matéria de interesse exclusivamente local, declinando de realizar a defesa do ato normativo impugnado (fls. 224/225).

Notificado, o Prefeito Municipal de Franca apresentou informações a fls. 227/230, sustentando a constitucionalidade da lei impugnada.

A Câmara Municipal de Franca, em suas informações de fls. 233/234, também defendeu o ato normativo impugnado.

É a síntese do ocorrido nos autos.

DA ALEGAÇÃO DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO E DO ESTADO PARA LEGISLAR SOBRE NORMAS RELATIVAS A CONSUMO E DEFESA DO MEIO AMBIENTE

O argumento utilizado na inicial, em sua essência, é no sentido de que o Município não teria competência para legislar a respeito do tema, tendo usurpado a competência federal e estadual para legislar sobre normas relativas ao consumo, defesa do meio ambiente e relações de trabalho.

É por essa razão que a autora aponta ocorrência de contrariedade ao disposto no art. 152 e no art. 193, I, II, IV, XV, XX e XXI, da Constituição do Estado de São Paulo e art. 22, 25, 111 e 144 da Constituição Federal.

Entretanto, com a devida vênia, não há contrariedade com relação a tais dispositivos.

A obrigação imposta pela lei, embora possa contribuir para a redução do uso de sacolas plásticas, não se trata de medida que visa à sua eliminação, mas atender a necessidade do consumidor em ter à sua disposição meios adequados e apropriados para o transporte de suas mercadorias.

Assim, a questão que se apresenta é um pouco diversa daquelas já submetidas à análise deste Colendo Órgão Especial, estando mais relacionada à matéria consumerista do que à ambiental.

A lei, ao estabelecer aos supermercados, hipermercados e estabelecimentos congêneres no Município de Franca, obrigação do fornecimento gratuito de sacolas descartáveis para acondicionamento das mercadorias adquiridas, a rigor diz respeito à qualidade do atendimento ao consumidor daqueles estabelecimentos, e ao poder de polícia do Município, exercido dentro do escopo de aprimorar as condições de prestação de serviços aos munícipes.

Esse aprimoramento das condições de atendimento daqueles estabelecimentos revela interesse local. Pode, portanto, ser objeto de lei municipal.

O art. 152, IV da Constituição Paulista apenas estabelece, genericamente, que a finalidade da organização regional do Estado é promover a integração do planejamento e da execução de funções públicas de interesse comum aos entes públicos atuantes na região.

De outro lado, o art. 193 da Carta Paulista, ao tratar, de forma programática, sobre a possibilidade da edição de lei estadual para criação de um sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle de desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, prevê, nos incisos I, II, IV, XV, XX e XXI XX e XXI, respectivamente, a finalidade de, propor uma política estadual de proteção ao meio ambiente; adotar medidas, nas diferentes áreas de ação pública e junto ao setor privado; realizar periodicamente auditorias nos sistemas de controle de poluição e de atividades potencialmente poluidoras; promover a educação ambiental e a conscientização pública para a preservação, conservação e recuperação do meio ambiente; controlar e fiscalizar obras, atividades, processos produtivos e empreendimentos que possam causar degradação ambiental, bem ainda realizar o planejamento e o zoneamento ambientais.

Ou seja, trata-se de dispositivos constitucionais que, se por um lado, estimulam a atuação do Estado de São Paulo na proteção do meio ambiente, de outro, não vedam que o Município também o faça, nem dizem respeito à atuação na área de proteção ao consumidor.

Não há dúvida em relação à competência administrativa e legislativa do Município para a promoção da defesa do meio ambiente, zelar pela saúde dos munícipes, bem como protegê-los em suas relações de consumo.

O art. 23, II, VI e VII da Constituição Federal atribui competência concorrente à União, aos Estados, ao Distrito Federal, e aos Municípios para, respectivamente: (a) cuidar da saúde; (b) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; (c) preservar as florestas, a fauna e a flora.

Do mesmo modo, a competência dos Municípios, em temas relacionados ao meio ambiente e também ao consumidor, pode ser extraída da previsão contida no art. 30, I e II da Constituição Federal, por força dos quais o legislador municipal pode regular temas de interesse local, e ainda suplementar a legislação federal no que couber.

Nesse mesmo sentido, o art. 225, § 1º da Constituição Federal impõe ao Poder Público de forma geral – ou seja, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios – inúmeras diretrizes, todas destinadas à preservação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Entre elas está, especialmente, nos termos do inciso V, a de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

A importância da proteção ao meio ambiente, como é cediço, é tão intensa, que até mesmo no âmbito da atividade econômica a Constituição da República impõe como princípios gerais a serem obsequiados, a “defesa do consumidor”, bem como a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” (art. 170, V e VI da CR/88).

Essa ideia foi assentada pelo Col. Supremo Tribunal Federal, em decisão relatada pelo Min. Celso de Mello, quando do julgamento da ADI 3540 MC/DF (j. 01/09/2005, Tribunal Pleno, DJ 03-02-2006), de cuja ementa se extrai o seguinte excerto:

“(...)

A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações.

(...)“

Acrescente-se que a competência do Município para legislar sobre o meio ambiente já foi reconhecida por esse Col. Órgão Especial, como se infere dos precedentes indicados a seguir:

“(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 4.253, de 06.03.2008, do Município de Valinhos – ‘Instituição de compensação às emissões de Gases de Efeitos Estufa (GEE) e o manejo adequado dos resíduos gerados por empresas que vierem a se instalar no Município’ - Atendimento a peculiar interesse do Município no controle, preservação e recuperação do meio-ambiente - Permissibilidade do art. 191 da Constituição do Estado de São Paulo - Descabimento de se cogitar infringência à norma da Constituição Federal ou Lei Orgânica do Município na esfera da presente ação direta de inconstitucionalidade improcedente. (ADIN 164.487-0/9-00, rel. des. Oscarlino Moeller, j. 04.02.2009).

(...)”

Entendimento diverso significaria contrariedade aos dispositivos constitucionais mencionados acima (art. 5º, XXXII, art. 30, I, art. 48, XIII, art. 170, V, e art. 192 red. EC nº 40/03, CF).

Não se pode, ainda, cogitar de qualquer violação a reserva de competência Federal e Estadual para legislar sobre matéria relativa a consumo, haja vista que, nesta área, não se pode negar a competência concorrente do Município, pois a questão está diretamente relacionada à proteção do consumidor, cuja dimensão difusa, impõe para sua garantia atuação de todos os entes do Estado, nos termos do inciso XXXII, do art. 5º, da Constituição Federal.

A lei a que alude o inciso XXXII do art. 5º, da Constituição Federal, não se trata apenas daquela que define responsabilidade por dano ao consumidor (cuja iniciativa legislativa compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal), mas de outras que garantam a proteção do consumidor.

 A obrigatoriedade imposta pela lei impugnada é direcionada a hipermercados, supermercados e estabelecimentos congêneres no Município de Franca, não estando em situação de similitude eventuais estabelecimentos do mesmo ramo localizados em municípios próximos.

Trata-se de obrigação imposta de forma geral e com critério de razoabilidade e diversidade de situação, e, visa a proporcionar aos munícipes consumidores meios adequados e seguros para o transporte das mercadorias adquiridas.

DA USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE NORMAS RELATIVAS A RELAÇÕES DO TRABALHO.

Há, no entanto, inconstitucionalidade parcial na Lei nº 7.649/12 de Franca, mais especificamente do art. 2º, que obriga os estabelecimentos a disponibilizarem funcionários para empacotar as mercadorias adquiridas.

A Câmara Municipal de Franca, na hipótese, invadiu o campo de competências da União.

 Com efeito, ao exigir dos hipermercados, supermercados, armazéns, mercearias, varejistas de hortifrutigranjeiros, padarias, açougues e outros estabelecimentos congêneres do Município, disponibilização de funcionários para empacotamento de mercadorias após passagem pelas caixas registradoras, acabou por invadir o campo de competência legislativa da União, a quem cabe legislar sobre Direito Comercial e do Trabalho (art. 22, I, da CF).

 Sobre o tema, Alexandre de Moraes afirma que “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local”.

 É evidente que a exigência para que tais empresas passem a contratar empacotadores não é um problema que deva ser resolvido em um ou outro Município. É medida voltada ao interesse geral, cabendo somente à União legislar a respeito.

 Neste aspecto, a lei não trata de matéria relativa ao direito do consumidor, ainda que reflexamente ele possa ser atingido. O dispositivo legal em apreço, na verdade, está restringindo a livre iniciativa e a livre concorrência.

A propósito, leciona José Afonso da Silva que: “A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei”.

As atividades econômicas atingidas pelo art. 2º da lei impugnada estarão em desvantagem em relação a outros municípios que não adotaram idêntica exigência.

 Sobre o tema, o C. Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de examinar legislação semelhante do Estado do Rio de Janeiro, e à época, em sede cautelar, decidiu:

 “Argüição de inconstitucionalidade de norma estadual que obriga ‘as organizações de supermercados e congêneres a manterem pelo menos um funcionário, por cada máquina registradora, cuja atribuição seja o acondicionamento de compras ali efetuadas’ (Lei nº 1.914/91, do Rio de Janeiro). Relevância da fundamentação do pedido, deduzida perante os artigos 22, I e parágrafo único e 24, § 3º, da Constituição Federal. Perigo da demora caracterizado pelo elevado montante da multa estipulada para o caso de descumprimento da obrigação.”

 Nem se diga se está adotando como objeto paradigma, a Constituição Federal.

 É que, nos termos do art. 144, da Carta Paulista, mencionado na inicial, os municípios têm autonomia legislativa, mas ficam compelidos a atender os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

 Esse Colendo Órgão Especial tem reiteradamente aplicado tal dispositivo como suporte exclusivo e necessário para a eliminação de regras que hostilizam o texto fundamental federal.

 Nesse sentido, caminhou decisão relatada pelo eminente Desembargador Oliveira Ribeiro, em parte aqui transcrita: “Além disso, é de se ver que em abono do propósito declaratório da inconstitucionalidade do artigo discrepante, a Constituição do Estado de São Paulo, sem repetir expressamente a fixação de ‘quorum’ de dois terços previsto na Constituição da República, não deixou de especificar o seu entendimento no sentido de impor observância desta exigência, fazendo-o com clareza posto que de modo indireto.  Eis o texto do seu artigo 144: ‘Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

 O mesmo posicionamento foi adotado na decisão proferida por esse Colendo Colegiado, na Adin nº 108.578-0/4, em que foi relator o eminente Desembargador Denser de Sá, julgada em 23/3/2005.

 Em assim sendo, o art. 2º e seu parágrafo único da lei examinada são inconstitucionais, por afronta aos arts. 1º e 144, da Constituição Bandeirante como, aliás, já se decidiu, em situação idêntica, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 123.776-0/8.

Procede parcialmente o pedido de decretação da inconstitucionalidade tão só do art. 2º e seu parágrafo único.

Diante de todo o exposto, nosso parecer é no sentido da procedência parcial do pedido, declarando se a inconstitucionalidade do art. 2º e seu parágrafo da Lei nº 7.649, de 17 de abril de 2012, do Município de Franca.

 

São Paulo, 06 de março de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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