Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0105530-42.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito da Estância Hidromineral de Águas da Prata

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Águas da Prata

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 29, XIII da Lei Orgânica Municipal da Estância Hidromineral de Águas da Prata que prevê a possibilidade da Câmara Municipal convocar o Prefeito Municipal e o Secretário do Município ou diretor equivalente para prestar esclarecimentos, aprazando dia e hora para o comparecimento.

2)      Inconstitucionalidade. Impossibilidade de convocação pelo Poder Legislativo em qualquer hipótese do Chefe do Executivo para prestar informações. A convocação de Secretários ou Diretores deve delimitar o assunto a ser objeto de informações. Inteligência art. 20, XIV da Constituição Estadual.

3)      Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito da Estância Hidromineral de Águas da Prata, tendo como alvo o art. 29, XIII, da Lei Orgânica daquele município que prevê a possibilidade da Câmara Municipal convocar o Prefeito Municipal e o Secretário do Município ou diretor equivalente para prestar esclarecimentos, aprazando dia e hora para o comparecimento.

Foi deferida a liminar suspendendo-se a eficácia do art. 29, inciso XIII, da Estância Hidromineral de Águas da Prata (fls. 22/23).

 Notificado (fl. 29), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a validade do dispositivo legal impugnado (fls. 31/35).

Citado regularmente (fl. 39), o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo impugnado, assinalando que a matéria tem repercussão exclusivamente local (fls. 41/43).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral.

Procede o pedido.

O art. 29, XIII da Lei Orgânica da Estância Hidromineral de Águas da Prata tem a seguinte redação:

“ARTIGO 29 – Compete privativamente à Câmara Municipal exercer as seguintes atribuições, dentre outras:

(...)

XIII – convocar o Prefeito e o Secretário do Município ou Diretor equivalente para prestar esclarecimentos, aprazando dia e hora para o seu comparecimento;

(...)”

O dispositivo legal normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes e a limitação formal ao campo de fiscalização do Poder Legislativo, previstos nos arts. 5º e 20, inciso XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 20 - Compete exclusivamente à Assembléia Legislativa:

(...)

XIV - convocar Secretários de Estado, dirigentes, diretores e Superintendentes de órgãos da administração pública indireta e fundacional e Reitores das universidades públicas estaduais para prestar, pessoalmente, informações sobre assuntos previamente determinados, no prazo de trinta dias, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificativa;

(...)”

Com o dispositivo legal impugnado, pretende o Poder Legislativo Municipal submeter o Prefeito Municipal e os Secretários ou Diretores a toda e qualquer convocação para prestar informações independente da existência de proposição ou delimitação do objeto do exercício do poder fiscalizatório.

 Vale ressaltar que o chamado controle externo dos atos do Poder Executivo pode ser exercido, entre outras formas, diretamente pelo Poder Legislativo, conforme preceitua o artigo 150 da Constituição do Estado de São Paulo, contando, para tanto, com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado (art. 33 da Constituição Estadual). Trata-se de um controle de natureza política “mas sujeito à prévia apreciação técnico-administrativa do Tribunal de Contas competente, que, assim, se apresenta como órgão técnico” (José Afonso da Silva, Direito Constitucional Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 685).

O poder de fiscalização da Câmara Municipal traduz-se na possibilidade de convocação de funcionários subalternos ao Prefeito para prestar depoimento, na instauração de comissão parlamentar de inquérito, na solicitação de informações e na tomada e julgamento de contas da Administração, sobre as quais serão realizadas inspeções e auditorias dos registros contábeis, balanços, escrituração e análise dos resultados econômicos e financeiros, (Ricardo Lobo Torres, O Orçamento na Constituição, Rio de Janeiro, Renovar, p. 239).

Em nosso ordenamento jurídico, não há norma que atribua posição subalterna e imponha ao chefe da Administração Pública a obrigação de comparecer perante o Poder Legislativo para prestar informações (que podem ser obtidas por outros meios).

O ato normativo impugnado, ao prever a possibilidade da Câmara Municipal convocar o Prefeito Municipal para pessoalmente comparecer e prestar informações, extrapola os limites da relação de harmonia e independência entre os poderes do Estado.

O art. 20, XIV, da Constituição Estadual, delimita o campo de fiscalização do Poder Legislativo prevendo apenas a possibilidade de convocação de Secretários de Estado, sem fazer qualquer referência à figura do Governador. De outro lado, impõe no ato convocatório a delimitação do objeto da fiscalização e das informações.

Diante destas diretrizes, não há que se falar que o Poder Legislativo esteja atuando em controle externo, mas, sim, está adentrando na esfera de atribuições do Poder Executivo, exercendo atividades inerentes ao controle interno, vale dizer, tendentes a “avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas e do orçamento; de comprovar a legalidade e avaliar os resultados quanto à eficácia e eficiência da gestão orçamentária, financeira e patrimonial; de exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres” (Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 1995, p. 121).

Clara é, portanto, a vulneração ao princípio da independência e harmonia dos poderes, consagrado no artigo 5º, caput, da Constituição do Estado de São Paulo. Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é aos Municípios, nos termos do artigo 144 da mesma Carta. As normas de fixação da esfera de atribuições têm como corolário o princípio da separação dos poderes, que nada mais é do que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos.

O Legislativo Municipal foi além do que possibilita a Constituição Estadual, pois a convocação do Prefeito em dia e hora a serem marcados pela Câmara significa, na verdade, submetê-lo a uma posição de inferioridade e transformá-lo em mero preposto do Legislativo.

Ademais, para exercício da relevante função fiscalizadora, dispõe a Edilidade de instrumentos próprios e hábeis para seu exercício, dentre eles o pedido de informações, a cujo atendimento o Prefeito não pode furtar-se, sob pena de prática de infração político-administrativa sujeita ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato (art. 4°, III, do Decreto Lei nº 201/67)

Assim, o controle externo que tem matriz constitucional foi desfigurado, afrontando o princípio da harmonia e independência entre os Poderes consagrado no art. 5º da Constituição Estadual. 

A propósito já houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal:

"Os dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembleia Legislativa capixaba convocar o presidente do Tribunal de Justiça para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência injustificada desse chefe de Poder. Ao fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu o paradigma da CF, extrapolando as fronteiras do esquema de freios e contrapesos – cuja aplicabilidade é sempre estrita ou materialmente inelástica – e maculando o princípio da separação de poderes. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘Presidente do Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do art. 57 da Constituição do Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 10-8-2006, Plenário, DJ de 2-2-2007.)

  “Dispositivo da Constituição do Estado da Bahia que prevê a convocação, pela Assembleia Legislativa, do governador do Estado, para prestar pessoalmente informações sobre assunto determinado, importando em crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada. Fumus boni iuris que se demonstra com a afronta ao princípio de separação e harmonia dos Poderes, consagrado na CF. Periculum in mora evidenciado no justo receio do conflito entre poderes, em face de injunções políticas. Medida cautelar concedida.” (ADI 111-MC, Rel. Min. Carlos Madeira, julgamento em 25-10-1989, Plenário, DJ de 24-11-1989.) No mesmo sentido: ADI 3.279, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 16-11-2011, Plenário, DJE de 15-2-2012.

 Não se nega ao Legislativo o seu poder constitucional de fiscalizar. Mas esse controle não é irrestrito. Ao contrário, encontra limites nas diretrizes dadas pelas Constituições Federal e Estadual.

A possibilidade de convocação de subalternos do Prefeito Municipal para pessoalmente prestarem esclarecimentos é limitada pela existência de tramitação de proposituras que abordem matérias pertinentes à atividade do servidor convocado, para que não pairem dúvidas ao Plenário, nem mesmo ao convocado quanto ao conteúdo das informações que se pretende obter pessoalmente.

Por este motivo, a convocação dos Secretários ou Diretores sem referência à matéria objeto das informações extrapola os limites fiscalizatórios do Legislativo, que, por se tratar de atuação excepcional, deve ser realizada em observância às formalidades constitucionais.

A propósito da matéria, em caso idêntico, já houve pronunciamento deste C. Órgão Especial:

“Ementa: Ação Direta de inconstitucionalidade do inciso XIII, do art. 34, da Lei Orgânica do Município de Tapiraí, que estabelece que compete exclusivamente à Câmara Municipal "convocar o Prefeito, Secretário Municipal ou Diretor para prestarem esclarecimentos, aprazando dia e hora para o comparecimento". A Constituição Estadual, art. 20, XIV, só permite à Assembléia Legislativa a convocação de Secretários de Estado "para prestar, pessoalmente, informações sobre assuntos previamente determinados, no prazo de trinta dias, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificativa". Essa disposição da Constituição Estadual guarda paridade com a disposição do art. 50 da Constituição Federal. A norma impugnada da Lei Orgânica do Município afronta a disposição do art. 20, XIV, da Constituição Estadual, não só por incluir o Prefeito entre as pessoas convocáveis, como também, por não delimitar o assunto a ser objeto de informações. Ação acolhida parar se declarar a inconstitucionalidade do art. 34, XIII, da Lei Orgânica do Município de Tapiraí.” (ADIn 0112790-59.2002.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Sunao Shintate j. 15 de agosto de 2003)

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade do ar. 29, inciso XIII, da Lei Orgânica Municipal da Estância Hidromineral de Águas da Prata.

 

              São Paulo, 21 de agosto de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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