Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0108499-30.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

 

Ementa:

1) Na ação direta de inconstitucionalidade, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE) e considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada, tão somente pelo procurador, sem poderes especiais.

2) Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 11.300, de 08 de março de 2013, do Município de São José do Rio Preto, que “Permite a atividade de Estacionamento de Veículos e Escritórios Administrativos e Clínicas na Rua Dr. Celso Spínola de Castro, no trecho compreendido entre a Rua Raul Silva e Avenida José Munia e Rua dos Radialistas Riopretenses, entre a Rua Celso Spínola de Castro e Avenida Francisco das Chagas Oliveira, no bairro Jardim Morumbi”.

3) Alteração indireta do zoneamento urbano.

4) Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

5) Lei de iniciativa parlamentar que trata da permissão de atividades comerciais e prestação de serviços e, indiretamente, da ocupação e uso do solo urbano. Violação do princípio da separação de poderes, bem como das diretrizes constitucionais que determinam a necessidade de planejamento e participação popular na legislação relacionada ao tema (arts. 5º, 47, II e XIV, 144, 180, II, e 181, § 1º, da Constituição Paulista).

6) Parecer pela procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo como alvo a Lei nº 11.300, de 08 de março de 2013, do Município de São José do Rio Preto, que permite o exercício de atividades comerciais e a prestação de serviços em determinadas regiões, alterando indiretamente o zoneamento urbano e os aspectos relacionados ao uso e ocupação do solo urbano no referido Município.

Sustenta o autor, em síntese, que a lei impugnada violou os arts. 2º da Constituição Federal, 5º, da Constituição Estadual e 8º e 30, XIII e XVII da Lei Orgânica do Município, alegando ofensa ao princípio da tripartição dos poderes e vício de iniciativa.

Foi deferida liminar para suspensão da eficácia do ato normativo (fl. 67).

Citado regularmente o Procurador Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo (fls. 170/171).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações sobre o processo legislativo (fls. 75/79).

É a síntese do ocorrido nos autos.

Preliminarmente, observo que a petição inicial é subscrita apenas por douto advogado público (fl. 09), acompanhada de instrumento de mandato, sem poderes especiais (fl. 10).

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.

 2. Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.

3. É a síntese do necessário.

4. Decido.

5. Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.

6. A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.

7. Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.

8. O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).

9. Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.

 10. No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.

 11. Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada, tão somente pelo procurador.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Esse entendimento foi direcionado também para os integrantes da advocacia pública.

Assim sendo, opino, preliminarmente, pela intimação do autor para regularização e subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito, conforme já decidido por este colendo Órgão Especial (ADI 0030396-43.2012.8.26.0000, Rel. Des. Guerrieri Rezende, v.u., 17-10-2012).

No mérito, a ação é procedente.

A Lei nº 11.300, de 08 de março de 2013, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que disciplina aspectos relacionados ao uso e ocupação do solo urbano no referido Município, permitindo atividades comerciais e prestação de serviços em áreas onde anteriormente não o era, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica permitida a atividade de Estacionamento de Veículos e Escritórios Administrativos e Clínicas na Rua Dr. Celso Spínola de Castro, no trecho compreendido entre a Rua Raul Silva e Avenida José Munia e Rua dos Radialistas Riopretenses, entre a Rua Celso Spínola de Castro e Avenida Francisco das Chagas Oliveira, no bairro Jardim Morumbi.

         Parágrafo Único – Ficam permitidas as atividades previstas na Secção III – das Categorias de Usos e Serviços: Serviços de bairro – Grupos A e B, da Lei de Zoneamento, na Rua Dr. Lino Braile, trecho compreendido entre as Ruas Antonio de Godoy e Rua Dr. Raul Silva, bairros Jardim Morumbi/Fernandes.

Inicialmente, registre-se que não se pode escorar a inconstitucionalidade em dispositivos que não sejam da Constituição Estadual, pois no âmbito do controle abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade de lei municipal predomina a exclusividade de parâmetro, exigindo o contraste do ato normativo local com a Constituição Estadual, nos termos do § 2º do art. 125 da Constituição Federal.

Por essa razão soa impertinente o cotejo da norma local com disposições da Lei Orgânica do Município.

Contudo, há, de fato, incompatibilidade da lei impugnada com os seguintes dispositivos da Constituição do Estado: arts. 5º, 47, II e XIV, 144, 180, II e 181, § 1º.

O ato normativo impugnado é fruto de iniciativa parlamentar. Foi discutido e aprovado na Câmara Municipal. O veto à Lei Complementar foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, sem que tenha havido efetivo planejamento, bem como oportunidade para participação popular.

Não há dúvida alguma quanto à indispensabilidade de planejamento prévio e de participação popular, princípios que devem ser observados na edição de leis relacionadas ao zoneamento e ao uso do solo, nos termos dos seguintes dispositivos da Constituição Paulista:

“(...)

Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

Art.181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal. (g.n.)

(...)”

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO PLANEJAMENTO

O ato normativo impugnado desrespeitou a necessidade de planejamento, princípio que deve ser observado na edição de leis relacionadas ao uso do solo.

Nos termos dos arts. 180, II e 181, § 1º, da Constituição Estadual, pode-se extrair que planejamento é indispensável à validade e legitimidade constitucional da legislação relacionada o uso do solo.

Todo e qualquer regramento relativo ao uso e à ocupação do solo, seja ele geral ou individualizado (autorização para construção em determinado imóvel, alteração do uso do solo para determinada via, área ou bairro, etc.), deve levar em consideração a cidade em sua dimensão integral, dentro de um sistema de ordenamento urbanístico, razão pela qual há a exigência de planejamento e estudos técnicos.

O art. 182, caput, da CF, disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Em decorrência dos dispositivos acima apontados, pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular.

A norma urbanística é, por sua natureza, uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.

Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade, deve decorrer de um planejamento que é um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.

O planejamento não é mais um processo discricionário e dependente da mera vontade dos administradores. Não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos, e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva.

Previsto e exigido pela Constituição (Arts. 48, IV e 182 da CF e art. 180, II da CE), tornou imposição jurídica a obrigação de elaborar planos e estudos quando se trata da elaboração normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas referentes ao desenvolvimento urbano.

Discorrendo a respeito do tema, Joseff Woff consigna que o plano urbanístico não constitui simples conjunto de relatórios, mapas e plantas técnicas, configurando um acontecer unicamente técnico. Compenetrando-se da realidade a ser transformada e das operações de transformação que consubstanciam o processo de planejamento, sob pena de ser mera abstração sem sentido, o plano urbanístico adquire, ele próprio, por contaminação necessariamente dialética, as características de um procedimento jurídico dinâmico, ao mesmo tempo normativo e ativo, no sentido de que os anteprojetos elaborados por técnicos e especialistas adquirem a categoria de diretrizes para a política do solo e sua edificação, ao mesmo temo que, em seus desdobramentos, se manifesta como conjunto de atos e fundamentos para a produção de atos de atuação urbanística concreta. (El Planeamiento Urbanístico del Território y lãs Normas que Garantizan su Efectividad, conforme a la Ley Federal de Ordenación Urbana, em La Ley Federal Alemana de Ordenación Urbanística y los Municípios, p. 28 ,  apud José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro,  2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 83).

A propósito do tema, José Afonso da Silva chega a observar que:

“Muitos fatores contribuem para dificultar a implantação desse processo, tais como carência de meios técnicos de sustentação, de recursos financeiros e de recursos humanos, bem assim certo temor do Prefeito e da Câmara de que o processo de planejamento substitua sua capacidade de decisão política e de comando administrativo”. (Direito Urbanístico Brasileiro, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 83).

A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade, mediante aplicação de instrumentos legais como o do zoneamento e de outras restrições urbanísticas que, como manifestação concreta do planejamento urbanístico, tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.

Para que o zoneamento seja legítimo, há de ter objetivos públicos, voltados para a realização da qualidade de vida dos habitantes da cidade e de quem por ela circule.

O zoneamento, como atividade urbanística, busca a transformação e orientação da realidade das cidades, dando uma sistematização, senão a ideal, pelo menos a possível e mais adequada. Por esse motivo é que a delimitação das zonas, sua localização e área com definição dos usos e restrições urbanísticas dependem de um estudo que deve levar em conta a situação existente e os objetivos do poder público com respeito às características a dar à cidade, segundo as possibilidades atuais e futuras do seu desenvolvimento, tal como precisa ser com qualquer tipo de planejamento.

Como instrumento legal urbanístico, o zoneamento deve ser estruturado e sistematizado para que possa proporcionar o adequado e sustentável crescimento da cidade, tendo sempre em vista o bem-estar da comunidade.

A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

O ato normativo impugnado viola diretamente a sistemática constitucional na matéria ao alterar o zoneamento e ampliar a área denominada por Macrozona de Aproveitamento Urbano, modificando as condições, limites e possibilidades do uso do solo urbano, sem realização de qualquer planejamento ou estudo específico.

Não se admite, nesse quadro, modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, para fins de elaboração e aprovação do Plano Diretor e da Lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, pois qualquer iniciativa parlamentar poderia redundar na completa alteração de tudo o quanto planejado e decidido até então.

José Afonso da Silva ensina, quanto às hipóteses de alteração de zoneamento, que:

“(...) recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça” (Direito Urbanístico. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 251).

Acerca da importância do planejamento urbanístico que deve preceder a toda e qualquer legislação elaborada nesta matéria, discorre Toshio Mukai que:

“(...) a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 29).

No caso em tela, pela análise do processo legislativo da Lei Municipal, verifica-se que não foram providenciados estudos técnicos ou qualquer planejamento abalizado para as alterações promovidas.

Deste modo, patente a inconstitucionalidade do ato normativo oriundo do Legislativo Municipal que, sem qualquer estudo prévio consistente, alterou de forma casuística e pontual o mapa de zoneamento urbano, ferindo frontalmente o disposto nos artigos 180, caput e inciso II, e 181, caput e § 1º, ambos da Constituição Estadual, bem como, por força do artigo 144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos artigos 182, caput e § 1º, e 30, inciso VIII, da Constituição Federal.

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR

 A transformação da realidade urbana interfere amplamente na propriedade privada urbana, impondo limites e condicionamentos ao seu uso.

A validade e legitimidade da norma urbanística, em virtude dos condicionamentos e limitações que impõe à atividade e aos bens dos particulares e de seu objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, pressupõe participação comunitária em todas as fases de sua produção.

Os planos e normas urbanísticas devem levar em conta o bem-estar do povo. Cumprem esta premissa quando são sensíveis às necessidades e aspirações da comunidade. Esta sensibilidade, porém, há de ser captada por via democrática, e não idealizada autoritariamente. O planejamento urbanístico democrático pressupõe possibilidade e efetiva participação do povo na sua elaboração.

Sendo democrático, ele se coloca contra pressões ilegítimas ou equivocadas em relação ao crescimento e ordenamento da cidade, busca contê-lo e orientá-los adequadamente.

O princípio da participação comunitária no estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano é uma exigência da Constituição Estadual (art. 180, II e 191).

O entendimento jurisprudencial sufraga a necessidade não só de prévio estudo técnico e planejamento, como da participação comunitária na produção de normas de ordenamento urbanístico. Neste sentido, convém transcrever as seguintes ementas:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis n°s. 11.764/2003, 11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo - Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências - Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Leis dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das normas.” (ADI 163.559-0/0-00, rel. des. Maurício Ferreira Leite, j. 10.02.2008).

DIREITO CONSTITUCIONAL - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - DIPLOMA NORMATIVO QUE ALTERA A LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO - ORIGEM PARLAMENTAR - VÍCIO DE INICIATIVA - AUSÊNCIA DE ESTUDO E AUDIÊNCIA PRÉVIOS - INCONSTITUCIONALIDADE - EXISTÊNCIA - É inconstitucional a Lei Complementar Municipal de Catanduva 359, de 8 de março de 2007, que altera a Lei Complementar Municipal 355, de 26 de dezembro de 2006, que institui o "Plano Diretor Participativo, a Lei de Uso e Ocupação do Solo e a Lei de Parcelamento do Solo do Município de Catanduva e dá outras providências", pois originada de projeto de lei parlamentar, e não do Poder Executivo, único competente para deflagrá-lo - Não realização de estudos e audiências prévios - Violação dos arts. 5°, 47, incisos II, XI e XIV, 144, 180, II, e 181, "caput" e § 1o, da Constituição do Estado de São Paulo - Jurisprudência deste Colendo Órgão Especial - Ação procedente.  (ADI 0077486-81.2011.8.26.0000, rel. des. Xavier de Aquino, j. 16/11/2011) 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE proposta contra a Lei Municipal n. 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes. Norma relativa ao desenvolvimento urbano. Lei de ordenamento do uso e ocupação do solo. Ausência de estudos e de planejamentos técnicos e de participação comunitária. Imprescindibilidade. Incompatibilidade vertical da norma mogicruzense com a Constituição Paulista. Ocorrência. Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Ofensa ao artigo 180, II e 191 da Constituição Bandeirante. Inconstitucionalidade configurada. Ação procedente.” (ADI 0494837-36.2010.8.26.0000, rel. des. Guerrieri Rezende, j. 12/09/2012)

No mesmo sentido: ADI 9031477-73.2009.8.26.0000, Rel. Des. Elliot Akel, j. 17/10/2012; ADI 0225476-76.2011.8.26.0000, Rel. Des. De Santi Ribeiro, j. 01/08/2012;  ADI 0207644-30.2011.8.26.0000, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, j.  21/03/2012; 0587046- ADI 24.2010.8.26.0000, Rel. Des.  Cauduro Padin, j. 21/03/2012; ADI 0194034-92.2011.8.26.0000, Rel. Des. Ruy Coppola, j. 29/02/2012.

Deste modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo que subtraiu a possibilidade e a exigência constitucional da participação popular, ferindo frontalmente o disposto nos art. 180, caput e inciso II, art. 181, caput e § 1º e art. 191, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art. 144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos art. 182 caput e § 1º, e o art. 30, inciso VIII, da Constituição Federal.

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

A matéria atinente à gestão da cidade decorre, essencialmente, da administração realizada pelo Chefe do Executivo, o que leva à conclusão de que, na hipótese em exame, foi violado o princípio da separação de poderes (art. 5º e art. 47, II e XIV, da Constituição Paulista, que reproduzem a diretriz contida no art. 2º da Constituição Federal).

Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (cf. art. 1º e art. 18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto. Limita-se ao âmbito pré-fixado pelo ente estrutural e hierarquicamente superior, vale afirmar, a Constituição Federal (cf. José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 459).

A autonomia do Município deve respeitar o princípio da separação dos Poderes, contando o art. 5º da Constituição do Estado com a expressa previsão de que eles atuam de forma independentemente e harmônica, regra aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Bandeirante, que determina a incidência, com relação àqueles, dos princípios constitucionais estabelecidos.

Em outras palavras, pela natureza da matéria regulada e pelos requisitos que nosso sistema constitucional estabelece para a elaboração da legislação urbanística, é lícito afirmar que ela demanda planejamento administrativo específico. E o planejamento na ocupação e uso do solo das cidades é algo que só o Poder Executivo é habilitado, estrutural e tecnicamente, a fazer.

Considerando que ao Poder Legislativo cabe legislar, e ao Poder Executivo cabe administrar, é lícito concluir que é inconstitucional o ato legislativo que invade a esfera da gestão administrativa - que envolve atos de planejamento, estabelecimento de diretrizes e a realização propriamente dita do que foi estabelecido na fase do planejamento (atos administrativos concretos) – por violar a regra da separação de Poderes.

No caso ora examinado, como a iniciativa legislativa partiu de Vereador, chega-se à conclusão de que o Legislativo Municipal violou a regra que exige independência e harmonia entre os Poderes, invadindo a esfera das atribuições do Executivo Municipal.

Vale, a propósito, colacionar precedentes desse Colendo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acolhendo, em hipóteses análogas, a tese da inconstitucionalidade por violação da separação de Poderes, e por isso aplicáveis ao caso mutatis mutandis:

“(...)

Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 3.801, de 01 de julho de 2004, do Município de Valinhos, que ‘cria zona corredor 1 – ZC1, nas ruas Martinho Leardine e Pedro Leardine e altera o zoneamento de Z2A para Z3B no JD. Paiquerê e no Condomínio residencial Millenium’. Lei apenas em sentido formal. Incompetência do Poder Legislativo Municipal. Matéria afeta ao Poder Executivo. Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes. Ação procedente. (TJSP, ADIN 119.158-0/3, Comarca de Valinhos, rel. Des. Denser de Sá, j. 02.02.2006).

(...)

Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei Complementar Municipal 1.482/03. ‘Autoriza, em caráter excepcional, atividades de prestação de serviços (clínicas de acupuntura, terapias e meditações) em trecho da Avenida Sumaré...’.Lei de iniciativa exclusiva do Prefeito. Ofensa à Constituição Estadual. Vício de iniciativa. Ação procedente. Inconstitucionalidade declarada. (TJSP, ADIN 115.322-0/3-00, Ribeirão Preto, rel. Des. Barbosa Pereira, j.27.07.2005).

(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Complementar n° 294/05 do Município de Catanduva - Alteração de Zoneamento Urbano - Identificação de lotes que passam a ter característica comercial, em zona estritamente residencial – Inadmissibilidade - Vício de inconstitucionalidade, por motivo de vedada delegação de poder em matéria de reserva legal. Ação julgada procedente. (ADI 148.671-0/1-00, rel. des. Walter Swensson, j. 23.01.2008, v.u.).

(...)”

Em síntese: (a) partiu de parlamentar a iniciativa do processo legislativo que culminou com a edição da lei impugnada; (b) a lei interferiu no planejamento urbanístico e no uso do solo, que se enquadram no conceito de gestão administrativa, reservada esta ao Poder Executivo; e (c) não houve planejamento prévio para aludida alteração bem como participação popular.

Cumpre lembrar que, embora os princípios relacionados ao planejamento e à participação popular na edição de normas relativas ao desenvolvimento urbano (arts. 180, II e 181 § 1º da Constituição Estadual) não tenham sido invocados na inicial, a natureza aberta da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade permite o exame da norma impugnada através de fundamento constitucional não adotado expressamente pelo autor.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que, no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido de acolhimento da presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 11.300, de 08 de março de 2013, do Município de São José do Rio Preto.

  São Paulo, 15 de agosto de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

     Jurídico

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