Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0110718-16.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Iacanga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Iacanga

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal de Iacanga, tendo por objeto a Lei n. 1.338, de 4 de abril de 2013, que “dispõe  sobre os critérios de pagamento de Despesas de Viagem dos Agentes Políticos e Servidores da Prefeitura Municipal de Iacanga, bem como o uso de veículo particular e dá outras providências”. Lei de iniciativa parlamentar. Matéria cuja iniciativa é privativa do Prefeito Municipal. Ofensa ao princípio da separação dos poderes (arts. 2º, 5º, 24, § 2º, 1, 25, 47, II, XIV e XIX, “a” e 144 da Constituição do Estado). Parecer pela procedência da ação.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Iacanga, tendo por objeto a Lei n. 1.338, de 4 de abril de 2013, que “dispõe  sobre os critérios de pagamento de Despesas de Viagem dos Agentes Políticos e Servidores da Prefeitura Municipal de Iacanga, bem como o uso de veículo particular e dá outras providências”, sob o argumento de violação aos arts. 5°, 33, 47, II, XIV e XIX, “a”, e 150 da Constituição do Estado.

A lei teve a vigência e eficácia suspensa, atendendo-se ao pedido liminar (fl. 29).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 37/41, defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 47/49).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente.

A Lei n. 1.338, de 4 de abril de 2013, do Município de Iacanga, apresenta a seguinte redação:

 “Art. 1º - Os Agentes Políticos e Servidores Públicos da Prefeitura do Município de Iacanga, quando se deslocar para viagem por interesse do Município, devidamente justificado, fará jus ao pagamento das despesas de viagem e quilometragem no uso do veículo particular, com adoção de um destes critérios:

I- pelo sistema de indenização dos valores gastos;

II- pelo regime de adiantamento;

§1º - A solicitação para pagamento das despesas de viagem de que trata o caput deste artigo deverá ser feita por escrito, indicando o objetivo da viagem, o período, localidade e previsão de despesas.

a) O uso de veículo particular está condicionado a:

I- indisponibilidade do veículo oficial;

II- urgência do serviço a ser realizado;

III- característica do material a ser transportado;

IV- custo/benefício da locação do veículo particular em relação ao oficial.

§2º - O pagamento das despesas de que trata esta Lei está condicionada à existência de recursos orçamentário e financeiro disponíveis, precedida de regular empenho na dotação orçamentária própria e de numerário destinado à realização de despesa.

§3º - O regime de adiantamento de viagem, que trata o inciso II do art. 1º, somente será aplicável aos Servidores Públicos, excluídos os Agentes Políticos.

Art. 2º - As despesas de viagem a que se refere o art. 1º, desta Lei são relativas ao custeio de alimentação, transporte, hospedagem e quilometragem, no uso de veículo particular.

 §1º - Em caráter de exceção é admissível efetuar despesas miúdas e de pronto pagamento realizadas fora dos limites territoriais do Município;

§2º - Para fins do disposto no §1º deste artigo, entende-se por despesas miúdas e de pronto pagamento aquelas que, tendo caráter de inadiáveis, classifiquem-se como material de consumo, serviços de terceiros e encargos.

Art. 3º - Em todos os casos de deslocamento para viagem prevista nesta Lei, é obrigado a apresentar relatório de viagem, no prazo de até 3 (três) dias úteis subsequentes ao seu retorno, constando, no mínimo as seguintes informações:

a) Nome do beneficiário;

b) Data e horário da partida e da chegada à sede;

c) Local ou locais de destino;

d) Motivo da viagem;

e) Natureza da despesa;

f) Descrição dos comprovantes legais anexados, seus valores unitário e total;

g) Data e assinatura do beneficiário.

Art. 4º - Realizada a viagem sob o regime de adiantamento, o servidor da Prefeitura Municipal deverá restituir os valores recebidos em excesso ou, quando, por qualquer motivo, não ocorrer o deslocamento.

§1º - Fica vedada a acumulação de dois adiantamentos.

§2º - O descumprimento do disposto no “caput” deste artigo sujeitará o Servidor da Prefeitura ao desconto integral imediato em sua folha de pagamento, dos valores de adiantamento recebidos, sem prejuízo de outras sanções legais.

Art.5º - As despesas de viagem autorizada pelo Prefeito, serão pagas até o 2º (segundo) dia útil seguinte à data de apresentação do relatório.

Art. 6º - As despesas decorrentes desta Lei correrão à conta dos recursos orçamentários vigentes.

Art. 7º - Esta lei será regulamentada por Decreto expedido pelo Chefe do Poder executivo Municipal, num prazo de 30 (trinta) dias a contar da data da sua publicação.

Art. 8º - Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação, revogando a Lei n. 858/2005 de 25 de janeiro de 2005 e disposições em contrário.”

A lei local regulamenta o pagamento de despesas de viagem dos agentes políticos e dos servidores públicos da Prefeitura Municipal de Iacanga.

Em que pesem os elevados propósitos que a inspiraram, cuida-se, à evidência, de lei que trata de regime jurídico do funcionalismo (pagamento de despesas de viagem), cujo projeto foi de iniciativa de parlamentar, com inequívoca afronta aos artigos as leis questionadas são de fato incompatíveis com os artigos 5º; 24, § 2º, nºs 1 e 4; e 47, II, XIV, XIX, “a” e 144, da Constituição do Estado, abaixo reproduzidos:

"Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

1 - Criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição (...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual’;

XIV- praticar os demais atos da administração, nos limites da competência do Executivo;

XIX- dispor mediante decreto sobre:

a) Organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação de órgãos públicos”.

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

A expressão “regime jurídico”’, corresponde “ao conjunto de regras que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes. Tal expressão, que é ampla, abrange todas as normas relativas: a) às formas de provimento; b) às formas de nomeação; c) à realização do concurso; d) à posse; e) ao exercício, inclusive hipótese de afastamento, de dispensa de ponto e de contagem de tempo de serviço; f) às hipóteses de vacância; g) à promoção e respectivos critérios, bem como avaliação do mérito e classificação fina (cursos, títulos, interstícios mínimos); h) aos direitos e às vantagens de ordem pecuniária; i) às reposições salariais e de vencimentos; j) ao horário de trabalho e ponto, inclusive regimes especiais de trabalho; k) aos adicionais por tempo de serviço, gratificações, diárias, ajudas de custo e acumulações remuneradas; l) às férias, licenças em geral, estabilidade, disponibilidade, aposentadoria; m) aos deveres e proibições; n) às penalidades e sua aplicação; o) ao processo administrativo.” (Cf. José Celso de Mello Filho, “Constituição Federal Anotada”, Saraiva, 1986, 2.ª edição, comentário ao art. 57, p. 220.)

Com efeito, a disciplina normativa pertinente ao regime jurídico dos servidores públicos, incluindo a concessão de benefício (pagamento de despesas de viagem), é matéria que, em razão de sua essência, insere-se na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

Esse entendimento tem o respaldo de maciça jurisprudência, em caso análogo:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.065, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1999, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, QUE DÁ NOVA REDAÇÃO À LEI 4.861, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1993. ART. 4º E TABELA X QUE ALTERAM OS VALORES DOS VENCIMENTOS DE CARGOS DO QUADRO PERMANENTE DO PESSOAL DA POLÍCIA CIVIL. INADMISSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. OFENSA AO ART. 61, § 1º, II, A e C, da CF. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. ADI JULGADA PROCEDENTE. I - É da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. II - Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio simetria. III - Ação julgada procedente” (STF, ADI 2.192-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 04-06-2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 792, DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO QUE ALTERA PRECEITO DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS ESTADUAIS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO LEGISLATIVO ESTADUAL. PROJETO DE LEI VETADO PELO GOVERNADOR. DERRUBADA DE VETO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno [artigo 25, caput], impõe a observância obrigatória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Precedentes. 2. O ato impugnado versa sobre matéria concernente a servidores públicos estaduais, modifica o Estatuto dos Servidores e fixa prazo máximo para a concessão de adicional por tempo de serviço. 3. A proposição legislativa converteu-se em lei não obstante o veto aposto pelo Governador. O acréscimo legislativo consubstancia alteração no regime jurídico dos servidores estaduais. 4. Vício formal insanável, eis que configurada manifesta usurpação da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo [artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘c’, da Constituição do Brasil]. Precedentes. 5. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei Complementar n. 792, do Estado de São Paulo” (STF, ADI 3.167-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 18-06-2007, v.u., DJ 06-09-2007, p. 36).

Dessa orientação não destoa a doutrina:

“As referidas matérias cuja discussão legislativa depende da iniciativa privativa do Presidente da República (CF, art. 61, § 1º) são de observância obrigatória pelos Estados-membros que, ao disciplinar o processo legislativo no âmbito das respectivas Constituições estaduais, não poderão afastar-se da disciplina constitucional federal.

Assim, por exemplo, a iniciativa reservada das leis que versem o regime jurídico dos servidores públicos revela-se, enquanto prerrogativa conferida pela Carta Política ao Chefe do Poder Executivo, projeção específica do princípio da separação dos poderes, incidindo em inconstitucionalidade formal a norma inscrita em Constituição do Estado que, subtraindo a disciplina da matéria ao domínio normativo da lei, dispõe sobre provimento de cargos que integram a estrutura jurídico-administrativa do Poder Executivo local” (Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 23ª. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 646).

Esse panorama conduz à ofensa ao princípio basilar da separação de poderes, pois, no dizer desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Em suma, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

        Conclui-se, daí, que – ao editar a Lei n.º 1.338/2013, de origem parlamentar, a dispor sobre matéria pertinente ao regime jurídico do funcionalismo público municipal – a Câmara Municipal de Iacanga desrespeitou a regra da iniciativa reservada e, consequentemente, violou o princípio da independência e da harmonia entre os Poderes.

         A lei local impugnada, também, é incompatível com o art. 25 da Constituição Estadual.

         A lei cria diretamente obrigações para o Poder Executivo sem indicação precisa de recursos orçamentários para atendimento dos deveres nela contidos, não bastando a previsão contida no § 2º do art. 1º de que “o pagamento das despesas de que trata esta Lei está condicionada à existência de recursos orçamentário e financeiro disponíveis, precedida de regular empenho na dotação orçamentária própria e de numerário destinado à realização de despesa”.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da  Lei n. 1.338, de 4 de abril de 2013, que “dispõe  sobre os critérios de pagamento de Despesas de Viagem dos Agentes Políticos e Servidores da Prefeitura Municipal de Iacanga, bem como o uso de veículo particular e dá outras providências”.

 

São Paulo, 3 de setembro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

 

vlcb