Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo n. 0111047-28.2013.8.26.0000
Requerente: Governador do Estado de São Paulo
Requeridos: Prefeito e Câmara Municipal de Cubatão
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. art. 1º, Lei n. 1.894, de 21 de dezembro de 1990, e Decreto n. 10.048, de 24 de maio de 2013, do Município de Cubatão. Limitação do horário de funcionamento de estabelecimento destinado ao estacionamento de veículos de transporte de carga. Autonomia municipal. Exorbitância. Procedência da ação. Interpretação conforme a Constituição. 1. Ao Município não é consentido, à luz do interesse local ou da suplementação da legislação alheia, livremente penetrar, direta ou indiretamente, na esfera de competência normativa federal ou estadual como a que trata dos serviços portuários e rodoviários ou na liberdade de circulação e de empresa além da razoabilidade, para fins de neutralização daquelas. 2. Normas atinentes a trânsito e transporte compreendem o estacionamento em estabelecimentos situados no território municipal, mas, são da alçada privativa da União, assim como se atribui aos Estados competências que não foram reservadas àquela e ao Município, e essas esferas não podem ser molestadas por uma excessiva dimensão do interesse local. 3. Delicada questão sobre as influências recíprocas das competências normativas outorgadas a cada ente federativo que se agrava, sobremaneira, se considerado o alcance de estabelecimentos integrados à atividade portuária, cuja competência normativa é da União, implicando direto embaraço ao acesso dos serviços rodoviários e portuários. 4. Lei n. 1.894/90, do Município de Cubatão, cuja abertura justifica para fins de controle de constitucionalidade sua contenção visando, mediante as técnicas inerentes, à leitura do preceito conforme a Constituição para concluir pela impossibilidade de afetar atividades da competência federal ou estadual e, por arrastamento, invalidar o decreto regulamentar dela dependente (Decreto n. 10.048/13).
Egrégio Tribunal:
1. O Governador do Estado de São Paulo ajuizou
ação direta de inconstitucionalidade em face do art. 1º da Lei n. 1.894, de 21
de janeiro de 1990, parcialmente no tocante ao horário de funcionamento de
estabelecimento comercial de estacionamento de veículos de transporte de
cargas, e do art. 1º do Decreto n. 10.048, de 24 de maio de 2013, do Município
de Cubatão, suscitando sua incompatibilidade com os arts. 19, caput e VII, 47, II e XIX, 111, 144, e
217, da Constituição Estadual c.c. os arts. 1º, IV, 3º, II, 5º, caput, XV e LIV, 21, XII, f, 22, X, XII, d, 25, § 1º, 30, I, 170, parágrafo único, da Constituição Federal (fls.
02/35).
2. Concedida a liminar (fls. 57/60),
a Prefeitura Municipal de Cubatão interpôs agravo (fls. 69/79) que foi
improvido (fls. 172/177).
3. A Câmara Municipal de Cubatão
prestou informações (fls. 180/182). O douto Procurador-Geral do Estado foi
citado e assinalou que subscreveu a petição inicial (fl. 213). A Prefeitura
Municipal de Cubatão prestou informações defendendo a constitucionalidade dos
atos normativos impugnados com base na autonomia municipal e arguiu a
inadmissibilidade de controle da constitucionalidade de decreto regulamentar,
tecendo manifestação sobre a motivação de sua edição à vista do transtorno
gerado pelo transporte de cargas (fls. 215/233).
4. É o relatório.
5. O contencioso de
constitucionalidade de lei municipal só é admissível pelo contraste com a
Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), ainda que esta
imite, reproduza ou se remeta à Constituição Federal.
6. O caso em exame ventila
importante questão a respeito dos limites da autonomia municipal, não estando
em debate impugnação da exorbitância de decreto regulamentar, cuja crise de
legalidade inabilitaria esta via especial. O questionamento articulado tem em
mira a lei editada, cujos termos foram suficientes para acomodar a emissão do
decreto regulamentar em caráter acessório, dependente e vinculado. A lei, como
será demonstrado adiante, não inclui estabelecimento destinado a estacionamento
de veículos de transporte de carga nas exceções à proibição de liberdade de
horário de funcionamento do comércio local.
7. Não se ignora que o Município tem
autonomia para o trato de assuntos de (predominante) interesse local nem que
possa suplementar a legislação federal ou estadual nessa medida (arts. 30, I e
II, Constituição Federal), que também desempenham o papel de seu limite, uma
vez que ele não pode se dissociar, a pretexto dessa autonomia, dos
condicionamentos que lhe oferecem a Constituição Federal (art. 29) e a
Constituição Estadual (art. 144).
8. O Município tem competência para
fixação de horário de funcionamento do comércio local? A resposta positiva é
fornecida pela Súmula 645 do Supremo Tribunal Federal:
“É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”.
9. O problema é a abertura
considerável do caput do seu art. 1º
da Lei n. 1.894, de 21 de dezembro de 1990, do Município de Cubatão:
“Nenhum estabelecimento, salvo as exceções legais, poderá funcionar aos domingos, feriados nacionais ou municipais, bem como nos dias úteis, antes das 08:00 e depois das 18:00 horas”.
10. Estabelecimentos de estacionamento
de veículos de transporte de carga não estão situados nas exceções depositadas
nessa lei que, todavia, ressalvam o contido na legislação federal ou estadual
(arts. 2º e 4º). Nessas condições, o parágrafo único do art. 4º da Lei n.
1.894/90 estabelece que podem funcionar das 07 às 22 horas, na alínea a do inciso VII, “garagens, oficina de
borracheiro e estabelecimento de veículos”, o que não contempla os
estabelecimentos de estacionamento de veículos de transporte de carga e,
portanto, se inserem na proibição do caput
do art. 1º.
11. A Prefeita do Município editou o
Decreto n. 10.048, de 24 de maio de 2013, valendo-se em seus consideranda da necessidade de
regulamentação do funcionamento dessa atividade em razão da organização,
promoção, controle e fiscalização do trânsito e do serviço de transporte no
território municipal, estipulando o funcionamento dos estabelecimentos
destinados ao estacionamento de veículos de transporte de carga somente entre
as 08 e 18 horas, nos termos do caput
do art. 1º da Lei n. 1.894/90.
12. A abertura que a cabeça do art. 1º
dessa lei proporciona, entretanto, não pode ir ao extremo de afetar competência
normativa federal ou estadual, como se o Município assumisse status de feudo independente na
federação, molestando atividades públicas ou particulares consentidas ou
delegadas pelas outras esferas federativas.
13. Essa abertura justifica, para fins
de controle de constitucionalidade, sua contenção visando, mediante as técnicas
inerentes, à leitura do preceito conforme a Constituição para concluir pela
impossibilidade de afetar atividades da competência federal ou estadual e, por
arrastamento, invalidar o decreto regulamentar dela dependente (Decreto n.
10.048/13).
14. A complexa teia orgânica federativa
apresenta círculos de competência distribuídos entre seus entes, cuja
respectiva atribuição sopesa a predominância do interesse para evitar conflito
na superposição de uma sobre a outra.
15. Ao Município não é consentido, à
luz do interesse local ou da suplementação da legislação alheia, livremente
penetrar, direta ou indiretamente, na esfera de competência normativa federal
ou estadual como a que trata dos serviços portuários e rodoviários ou na
liberdade de circulação e de empresa além da razoabilidade, para fins de
neutralização daquelas.
16. Normas atinentes a trânsito e
transporte compreendem o estacionamento em estabelecimentos situados no
território municipal, mas, são da alçada privativa da União, como emerge do
inciso XI do art. 22 da Constituição Federal, assim como se atribui aos Estados
competências que não foram reservadas àquela e ao Município (art. 25,
Constituição Federal), e essas esferas não podem ser molestadas por uma
excessiva dimensão do interesse local.
17. Trata-se de delicada questão sobre
as influências recíprocas das competências normativas outorgadas a cada ente
federativo que se agrava, sobremaneira, se considerado, como expõe a petição
inicial, o alcance de estabelecimentos integrados à atividade portuária, cuja
competência normativa é da União (art. 22, X, Constituição Federal), o que
implica, diretamente, o embaraço do acesso aos serviços rodoviários e
portuários.
18. Ausente o traço nuclear da
autonomia municipal na medida em que o exercício da competência normativa não se
adstringiu à disciplina do horário de funcionamento do comércio local, pois, a
falta de predominância do interesse local é notória.
19. Interesse todos os entes
federativos têm. Porém, a medida do interesse local para balizamento da
autonomia municipal é a sua predominância em face dos interesses federais (centrais)
ou estaduais (regionais), o que não corresponde à exclusividade, pois, como
acentua Jair Eduardo Santana:
“O traço que torna diferente o interesse local do interesse geral é a predominância, jamais a exclusividade (...)
Em conclusão, o interesse local previsto na Carta atual somente pode ser entendido como sendo aquele que se refere, inicial e diretamente ao agrupamento humano local, mas que também deve atender aos interesses do Estado e de todo o país” (Competências legislativas municipais, Belo Horizonte: Del Rey, 1993, pp. 99, 102).
20. Como resume Fernanda Dias Menezes
de Almeida:
“(...) já se solidificara toda uma construção doutrinária, avalizada pela jurisprudência de nossos Tribunais, no sentido de fazer coincidir o peculiar interesse com o interesse predominante do Município” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2000, 2ª ed., p. 114).
21. E mesmo a competência suplementar
não é ilimitada, pois, se ela se habilita quando necessário ao exercício de
competências materiais (comuns ou privativas), exige-se a pertinência ao
círculo do interesse local, como salienta a ilustre Professora das Arcadas (op. cit., p. 157).
22. A contextura justifica a superação
do estado de inconstitucionalidade gerada por norma que, por sua
característica, embasou a emanação da polícia municipal além das fronteiras de
seu cabimento, o que inspira, a bem da segurança jurídica, interpretação
conforme a Constituição.
23.
Opino pela procedência da
ação para dispensar ao art. 1º da Lei n. 1.894, de 21 de dezembro de 1990, do
Município de Cubatão, interpretação conforme a Constituição para concluir pela
impossibilidade de restrição a atividades da competência federal ou estadual e,
por arrastamento, invalidar o decreto regulamentar dela dependente (Decreto n.
10.048/13).
São Paulo, 01 de novembro de
2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj