Ação Direta de Inconstitucionalidade – manifestação final

 

 

Processo nº 0112171-80.2012.8.26.0000

Requerente: Procurador-Geral de Justiça

Requeridos: Presidente da Câmara Municipal de São Paulo, Prefeito do Município de São Paulo e Abrasce – Associação Brasileira de Shoppings Centers

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 3º do art. 8º, do § 1º do art. 12, da frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12, e dos §§ 1º ao 4º, do art. 15, todos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo.

2)      Disposições legais que: (a) limitam o valor das contrapartidas (compensações) a serem exigidas para empreendimentos qualificados como “Polos Geradores de Tráfego” ao teto de 5% do valor do próprio empreendimento; e (b) permitem o início da atividade e a obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação (“habite-se”) antes da conclusão das contrapartidas ou obras de compensação do tráfego gerado.

3)      Defesa do meio ambiente natural e artificial ou urbano, da cidade e dos munícipes. Princípios constitucionais estabelecidos. Princípio da razoabilidade. Inconstitucionalidade dos dispositivos glosados por contrariedade aos artigos 111, 144, 180, I e III, e 191 da Constituição do Estado de São Paulo. Precedentes do Col. Supremo Tribunal Federal.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral de Justiça, tendo como alvo os parágrafos 1º e 3º do art. 8º, do § 1º do art. 12, da frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12 e dos §§ 1º ao 4º do art. 15, todos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo.

Indeferido o pedido de liminar para suspensão dos preceitos impugnados (fls. 29), foi interposto agravo regimental (fls. 31/39). O Col. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, por maioria de votos, na sessão de julgamento realizada em 29 de agosto de 2012, negou provimento ao agravo, vencidos os desembargadores Xavier de Aquino, Antônio Carlos Malheiros, Renato Nalini, Enio Zuiani, Luis Soares de Mello e Grava Brazil, que davam provimento ao recurso para suspender os dispositivos impugnados (fls. 64/93).

A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SHOPPING CENTERS (ABRASCE) requereu sua intervenção como “amicus curiae” (fls. 96/118), sustentando a constitucionalidade da norma, juntando, inclusive, parecer subscrito pelo Emérito Professor Adilson Abreu Dallari (fls. 175/232).

Foi deferido mencionado pedido de intervenção (fls. 239).

Citado, o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 250, 252/253).

O Prefeito e o Presidente da Câmara Municipal prestaram informações, sustentando preliminarmente inadequação da via processual eleita (por inexistência de disposição a respeito do tema na Constituição do Estado), pugnando pela extinção da ação direta sem o exame do mérito. Pugnaram alternativamente pela declaração da constitucionalidade do ato normativo (fls. 255/273 e 500/521).

A ABRASCE postulou o reconhecimento da constitucionalidade da lei, sustentando, com amparo no parecer elaborado pelo Emérito Professor Adilson Abreu Dallari, que não há violação dos dispositivos constitucionais apontados na inicial, visto não haver nos preceitos impugnados, em suma, qualquer contrariedade ao princípio da razoabilidade ou ao princípio da precaução.

É o relato do essencial.

Como é inerente ao processo objetivo, o debate a respeito da questão constitucional se resolve, essencialmente, na interpretação dos atos normativos hostilizados.

Nesse passo, e com a devida vênia em relação ao parecer apresentado pelo Emérito Professor Adilson Abreu Dallari, bem como às informações apresentadas pelo Prefeito e pela Presidência da Câmara Municipal de São Paulo, cumpre-nos reiterar a linha de argumentação apresentada na petição inicial da presente ação direta de inconstitucionalidade, sendo ocioso e desnecessário repetir aquilo que já foi anteriormente exposto.

Deve-se, ademais, prontamente afastar a preliminar apresentada nas informações do Prefeito e da Câmara Municipal, no sentido de que não há parâmetro, na Constituição Paulista, para o controle da lei municipal impugnada, e que, consequentemente, o processo deveria ser extinto sem exame do mérito.

Tanto assim que foi consignada, quando da propositura da ação, a contrariedade aos artigos 111, 144, 180, I e III e 191 da Constituição Paulista.

Respeita-se - embora dele evidentemente se divirja - o posicionamento contrário à tese deduzida na inicial da ação direta, por parte do ilustre autor do parecer (elaborado a partir de pedido da Associação Brasileira de Shoppings Centers - ABRASCE), bem como o entendimento sustentado pelo Prefeito e pela Câmara Municipal.

Inaceitável, entretanto, o requerimento de extinção do feito sem exame do mérito.

No mais, a postulação de declaração de inconstitucionalidade não envolve conclusão ou pretensão, como anotou o ilustre autor do parecer (fls. 204):

“(...)

Preconceituosa, anacrônica, e revela uma profunda ignorância das funções sociais da cidade, que não se resume ao trânsito...

(...)”

As informações apresentadas, e o parecer referido, procuraram dissociar a questão urbanística da questão ambiental, salientando que não há contrariedade ao princípio da razoabilidade, nem seria aplicável ao caso o princípio da precaução. Acrescentaram, ainda, que a solução preconizada na ação seria absurda.

Quando da propositura da ação, entretanto, foi esclarecido nitidamente que os dispositivos impugnados criam situação de risco para o meio ambiente, visto que a proteção a esse valor, assentada tanto na Carta Federal como na Carta Estadual, envolve não só o meio ambiente natural, mas também o meio ambiente artificial ou urbano.

O não acolhimento da alegação de inconstitucionalidade, com fundamento nos dispositivos da Constituição Paulista indicados (art. 111, 144, 180, I, III e 191), implicará, naturalmente, contrariedade aos dispositivos da CF igualmente referidos na inicial (art. 23, VI, 29, 30, VIII, 170, VI, e 225), visto que também assentam diretrizes voltadas à proteção do meio ambiente.

Acrescente-se, por oportuno, que o não reconhecimento da ofensa à razoabilidade, tratada na Constituição do Estado no art. 111, significará contrariedade ao art. 5º, LIV da Constituição Federal, do qual pode ser extraído, na Constituição, o mesmo princípio.

Note-se: não se trata de invocar dispositivos da Constituição Federal para o controle de lei municipal.

Trata-se, apenas, de pontuar que, se o tribunal local não reconhece a inconstitucionalidade da lei local que contraria normas da Constituição do Estado nas quais se assenta a defesa do meio ambiente (inclusive o meio ambiente urbano ou artificial), isso significará contrariedade aos dispositivos da Constituição Federal que igualmente determinam a preservação daquele.

Por último e não menos importante, mostra-se relevante observar que os ilustres desembargadores Xavier de Aquino, Renato Nalini, Antônio Carlos Malheiros, Enio Zuliani, Luis Soares de Mello e Grava Brazil, bem compreenderam a dimensão da questão constitucional apresentada neste feito, acolhendo, embora vencidos no julgamento, o pedido de suspensão da liminar.

A propósito, pedimos vênia para transcrever passagem do voto do desembargador Renato Nalini, que acolhia o agravo regimental para determinar a suspensão das normas glosadas na ação direta:

“(...)

A questão relacionada aos empreendimentos geradores de tráfego na cidade de São Paulo é tema sensível que requer extrema cautela em sua análise. Não se pode olvidar que tanto o Direito à Livre Iniciativa, quanto o Direito à Propriedade, no Brasil contemporâneo, submetem-se a princípios fundantes, dentre os quais a defesa do meio ambiente. Basta examinar a contundência do artigo 170 da Carta Política (...)

Esquecem-se os empreendedores, ávidos na obtenção de lucro, da imprescindível incidência de um novo princípio no ordenamento vigente: o princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal. (...)

Não é apenas o Estado quem deve zelar pelo meio ambiente, mas toda a sociedade. Só que o Estado, quando acionado, tem o dever de tornar efetivas as promessas do constituinte e a concretizar mensagens normativas da Constituição da República. Diante dessa realidade inconstestável, incumbe ao Poder Público e à coletividade a defesa e preservação do maior patrimônio da humanidade.

Tem-se salientado com ênfase que o constituinte, ao explicitar o direito ao meio ambiente equilibrado como o primeiro direito intergeracional, conferiu densidade jurídica mais consistente do que outro qualquer bem da vida. E isso deve produzir resultados na ordem prática. O direito ao meio ambiente, consubstanciado no uso equilibrado do solo urbano, é essencial à sadia qualidade de vida. É, portanto, direito fundamental. E o poder público deve concretizar a possibilidade de fruição desse bem da vida imprescindível.

Ao examinar um recurso como o presente, impõe-se a cada julgador uma interpretação constitucional que leve em conta não apenas os valores procedimentais do processo, mas – de maneira efetiva e principalmente – as questões de princípio. (...)

O que a Constituição Brasileira de 1988 quis dizer em relação ao meio ambiente? Converteu-o em direito fundamental. Não apenas isso. Explicitou-o como primeiro direito intergeracional da ordem fundante no Brasil. O direito mais relevante, de maior dimensão, pois pertine à própria potencialidade de subsistência da vida no planeta.

A perspectiva de neutralização de um direito fundamental das presentes e futuras gerações impõe outra vertente interpretativa dos julgadores. A vontade do constituinte não foi a do momento histórico de elaboração do pacto, mas uma vontade que tende a um fim. Esta visão teleológica da proteção do ambiente constitui verdadeiro princípio. E na ponderação de princípios, a primazia é de ser conferida à tutela da vida.

Também a cautela é medida que se impõe. Incide na espécie o princípio da precaução, segundo o qual ‘as pessoas e o seu ambiente devem ter em seu favor o benefício da dúvida, quando haja incerteza sobre se uma ação os vai prejudicar’. (...)

O Ministério Público, nestes autos, é o defensor da coletividade e tutela, com pertinência e adequação, o único bem da vida essencial à qualidade de vida e sem o qual não existirá vida no planeta.

Por estes motivos, dou provimento ao recurso para que a liminar seja concedida, com o fim de que haja a suspensão da eficácia dos dispositivos da Lei Municipal nº 15.150, apontados pela Procuradoria-Geral de Justiça.

É o que melhor defende o ambiente e com justeza maior estimula os interessados todos a tomarem uma atitude consequente em relação ao uso equilibrado do solo urbano tendo em vista o impacto dos empreendimentos geradores de tráfego na cidade de São Paulo.

(...)”

Nessa mesma linha, o voto do desembargador Luís Soares de Mello, que dava provimento ao agravo para determinar a suspensão da eficácia da lei, salientando que:

“(...)

Isso porque havendo, como efetivamente há, notícia de ofensa ao meio ambiente urbano por parte de empreendimento classificado como ‘polo gerador de tráfego’, que teria se utilizado de permissivo legal para iniciar suas atividades, entende o subscritor, por absoluta prudência, a necessidade de concessão da liminar.

O próprio princípio ambiental da precaução, em reforço ao antes colocado, também recomenda o deferimento da liminar.

(...)”

No mesmo sentido, o voto do desembargador Grava Brazil, quando do julgamento do agravo regimental, anotando que:

“(...)

Ainda com o devido respeito, o aprofundamento da cognição, conquanto indispensável, necessária, não afasta o juízo prévio de razoabilidade, nem a ação busca substituir um critério por outro, mas afastar aquele que não se apresenta, ao ver do agravante, constitucionalmente adequado.

Nesse foco, a inconstitucionalidade invocada frente aos arts. 180, I e II, e 191 da CE, vai além do princípio da razoabilidade, uma vez que empreendimentos de vulto, realizados nesta urbe, poderão, ao menos em princípio e em tese, ter o se funcionamento autorizado, mesmo que em prejuízo ao meio ambiente urbano e sem que as medidas possíveis para minimizá-lo pudessem ser adotadas.

(...)”

 Nada há, portanto, de anacrônico, preconceituoso, ou mesmo absurdo, em se propugnar pelo reconhecimento da inconstitucionalidade de disposições legais que acabam concedendo, direta ou indiretamente, primazia à atividade empresarial, em detrimento das reais possibilidades de manutenção de adequadas condições de vida no meio ambiente, seja ele natural ou urbano.

Em suma, as disposições legais impugnadas (a) limitam o valor das contrapartidas (compensações) a serem exigidas para empreendimentos qualificados como “Polos Geradores de Tráfego” ao teto de 5% do valor do próprio empreendimento, e (b) permitem o início da atividade e a obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação (“habite-se”) antes da conclusão das contrapartidas ou obras de compensação do tráfego.

Com isso, tais dispositivos mostram-se incompatíveis com o princípio da razoabilidade, bem como com as diretrizes constitucionais direcionadas à proteção do meio ambiente (inclusive o urbano), justificando-se a declaração da sua inconstitucionalidade.

Foi por isso que a inicial da ação direta assentou que:

“(...)

Contudo, o legislador municipal equivocou-se, com a devida vênia, ao incluir no texto legal os dispositivos impugnados nesta inicial, visto que eles permitem, em última análise, que: (a) as contrapartidas a serem exigidas do Poder Público Municipal junto ao empreendedor sejam insuficientes e inadequadas para a realização de compensações compatíveis com a situação real ou concreta; e (b) que o empreendimento entre em funcionamento antes que todas as contrapartidas estejam concluídas.

Nesse particular, observa-se que:

(a) os §§ 1º e 3º do art. 8º limita ao máximo de 5% do valor do empreendimento o custo das obras para melhorias viárias, a serem exigidas pelo Poder Público Municipal do empreendedor, o que pode se revelar, na prática dos casos concretos, manifestamente insuficiente para adequadamente tutelar o meio ambiente urbano e o bem-estar da cidade e dos munícipes;

(b) o § 1º do art. 12, combinado com a frase ‘da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes’ do § 3º do referido artigo, permitem a interpretação no sentido de que, mediante o depósito de caução equivalente ao dobro do valor das contrapartidas (limitadas estas a 5% do valor da obra), seja autorizado o funcionamento do empreendimento antes mesmo que as providências de mitigação do impacto no tráfego estejam totalmente concluídas, situação esta que pode criar, em casos concretos, riscos de danos irreparáveis ou de difícil reparação, mostrando-se tais disposições manifestamente insuficientes para adequadamente tutelar o meio ambiente urbano ou artificial e o bem-estar da cidade e dos munícipes;

(c) os §§ 1º ao 4º do art. 15 possibilitam a obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação (‘habite-se’) sem que as obras de mitigação (contrapartidas) tenham sido completamente realizadas, mediante o oferecimento de garantia financeira (caução em dinheiro ou fiança bancária). Essa solução, como antes afirmado, ao autorizar a ocupação e o funcionamento do empreendimento antes mesmo que as providências de mitigação do impacto no tráfego estejam totalmente concluídas, pode criar situações de risco de danos irreparáveis ou de difícil reparação, mostrando-se tais disposições manifestamente insuficientes para adequadamente tutelar o meio ambiente urbano ou artificial e o bem-estar da cidade e dos munícipes.

Observemos, inicialmente, a questão relacionada à fixação de limite máximo de 5% do valor do empreendimento para as obras de adequação viária (contrapartidas).

Contraria o princípio da razoabilidade tal limitação legal, pois ela pode significar, na prática, a adoção de medidas insuficientes para a adequada proteção do meio ambiente urbano e para o bom uso do solo da cidade, especialmente em uma metrópole como São Paulo, cuja população ultrapassa em muito, como é notório, dez de milhões de habitantes, e cujos problemas de trânsito são absolutamente evidentes, crônicos e aparentemente sem solução imediata.

A título de ilustração, anote-se que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população da cidade de São Paulo no ano de 2010 era de 11.253.503 (onze milhões duzentos e cinquenta e três mil e quinhentos e três) habitantes (Fonte: http://www.ibge.gov.br, acesso em 28.05.2012).

Por outro lado, estima-se informalmente, em conformidade com notícias frequentes nos meios de comunicação, que a frota de veículos na cidade de São Paulo já se avizinha da casa dos sete milhões de veículos (Fonte: http://noticias.r7.com, notícia de 04.04.2011, acesso em 28.05.2011).

Esses números nos sensibilizam quanto à necessária preocupação para com a gravidade do problema da mobilidade urbana, na cidade de São Paulo, e a indispensável atenção e cuidado que o tema deve receber por parte de todos e do Poder Público em especial.

Em perspectiva pragmática, não se mostra razoável que, diante da gravidade já constatada, contemporaneamente, no cotidiano da cidade de São Paulo quanto à precariedade de seu sistema viário e do incontornável e já exacerbado problema do tráfego urbano, a legislação municipal crie limite fixo às medidas de compensação.

Isso acaba por permitir, em homenagem exclusivamente aos interesses dos empreendedores e em detrimento dos interesses da cidade, do meio ambiente urbano e dos munícipes, que não sejam impostas medidas suficientes e adequadas, como contrapartidas, para viabilizar a realização de empreendimentos imobiliários e sua entrada em funcionamento.

(...)”

Diante do exposto, reiterados os fundamentos e argumentos antes apresentados, aguarda-se a procedência da presente ação direta de inconstitucionalidade.

São Paulo, 6 de junho de 2013.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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