Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0115401-96.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Marília

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Marília

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 670, de 11 de outubro de 2012, do Município de Marília. Tratamento jurídico diferenciado às micro e pequenas empresas, de que trata a Lei Complementar Federal n. 123 de 14 de dezembro de 2006, no âmbito do Município de Marília. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Criação de despesas sem indicação da origem dos recursos para cobrir os novos encargos. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º; 24, § 2º, n. 1 e 2; 25; 47, incs. II, XIV e XIX, “a”; 144; e 176, I, da Constituição Estadual.  Procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida em face da Lei Complementar nº 670, de 11 de outubro de 2012, do Município de Marília, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre o tratamento jurídico diferenciado às micro e pequenas empresas, de que trata a Lei Complementar Federal n. 123, de 14 de dezembro de 2006, no âmbito do Município de Marília.

Alega-se ausência de interesse local do Município para tratar da matéria, acarretando a falta de competência legislativa (art. 30, II, da CF) e vício de iniciativa.

A liminar foi concedida (fls. 70/71).

A Câmara Municipal prestou informações em defesa da norma impugnada (fls. 86/89) e a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 82/85).

A lei impugnada assim dispõe, no que interessa:

“Art. 1º - Esta Lei Complementar estabelece normas gerais conferindo tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, institui e cria o Programa de Incentivos para o Desenvolvimento das Atividades Econômicas no Município de Marília – PROINDEM  e Conselho de Desenvolvimento Econômico para Geração de Emprego e Renda – CONDEGER.

§ 1º - O tratamento diferenciado e favorecido às micro e empresas de pequeno porte mencionado no caput, legalmente definidas no âmbito do município deve atender em especial ao que se refere:

I – aos benefícios fiscais dispensados às micro e pequenas empresas;

II – à preferência nas aquisições de bens e serviços pelo Poder Público;

III – à inovação tecnológica e à educação empreendedora;

IV – ao associativismo e às regras de inclusão;

V – ao incentivo à geração de empregos; e

VI – ao incentivo à formalização de empreendimentos.

Art. 2º - Para as hipóteses não contempladas nesta Lei Complementar, serão aplicadas as diretrizes da Lei Complementar Federal nº 123 de 14 de dezembro de 2006.

(...)

Art. 117 -  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação e seus efeitos operar-se-ão a partir de 1º de janeiro de 2011.”

Primeiramente, no que tange à competência do município para tratar da matéria, estamos que razão não assiste ao requerente.

Isto porque é nítido o interesse local do município para estabelecer a forma que pretende fomentar o seu desenvolvimento. No caso, elegeu-se enveredar pelo o caminho do incentivo às micro e pequenas empresas. Para se chegar a tal conclusão, vislumbrou-se, por certo, o que de melhor seria para atender aos anseios da comunidade.

Como se sabe, o artigo 30, inciso I, da Constituição Federal dispõe que tem o município o poder de legislar sobre assunto de interesse local, vale dizer, sobre matéria que, de modo direto e imediato, apresente a preponderância da vontade dos munícipes, sem ingerência dos outros entes políticos, mas observando os princípios da Carta Maior. A gestão dos negócios locais limitar-se-ia, portanto, ao desempenho de sua própria competência.

Consagrou a Constituição Federal, no tocante à competência federativa, uma forma de compatibilização da autonomia das entidades com sua esfera de atribuições, orientada pelo critério de equilíbrio pelo interesse preponderante, com reflexo nas “necessidades imediatas do município” (Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, São Paulo, Atlas, 2000, p. 287), caracterizado “pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado e da União” (José Afonso da Silva, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1997, p. 122).

Assim, à ideia do interesse nacional, regional ou local indicar, respectivamente, a competência da União, dos Estados e dos Municípios, é preciso ter em conta que o sistema brasileiro, “por meio de uma repartição de competências que se fundamenta na técnica da enumeração dos poderes da União (arts. 21 e 22), com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, § 1º) e poderes definidos indicativamente para os Municípios (art. 30), mas combina, com essa reserva de campos específicos (nem sempre exclusivos, mas apenas privativos), possibilidades de delegação (art. 22, parágrafo único), áreas comuns em que se preveem atuações paralelas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23) e setores concorrentes entre União e Estados em que a competência para estabelecer políticas gerais, diretrizes gerais ou normas gerais cabe à União, enquanto se defere aos Estados e até aos Municípios a competência suplementar” (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 455).

É certo que classificar um interesse como local — o que conduz à indicação da competência do município para discipliná-lo — depende da análise particularizada do tema, de modo a identificar o “interesse preponderante” citado pela doutrina, como ensina Hely Lopes Meirelles: “Estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa — e inútil, por incompleta — a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc.; regulamentos sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto há um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao município a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local, é de se assinalar, a título exemplificativo, a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema monetário, a telecomunicação e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 12ª ed., p. 135, grifei).

No caso ora em exame, é evidente que a eleição sobre o método de incentivo que leve ao desenvolvimento do Município, dadas as suas peculiaridades, incumbe ao legislador municipal.

Por outro lado, no tocante à alegação de vício de inciativa, temos que presente se faz a aludida mácula.

A impugnada lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º; 24, § 2º, n. 2; 25; 47, incs. II, XIV e XIX, “a”; 144; e 176, I, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 176 - São vedados:

I - o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;”

Como visto, a impugnada norma cria um programa de governo (PROINDEM – Programa de Incentivos para o Desenvolvimento das Atividades Econômicas no Município de Marília), impondo à Administração a obrigação de implementá-lo e desenvolver as atividades indicadas pela norma em questão, gerando, consequentemente, maiores despesas, o que importa em invasão da seara administrativa.

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa que visa incentivar o desenvolvimento econômico, no Município de Marília, onerando, desta forma, a Administração.   Embora elogiável a preocupação do Poder Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 2001, págs. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Note-se, outrossim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com o disposto no art. 25, da Constituição Bandeirante e com o art. 176, I, do mesmo diploma que coíbe o “o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual”.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25), COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS, PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Ainda, ao criar o Conselho de Desenvolvimento Econômico para Geração de Emprego e Renda – CONDEGER, a vergastada norma culminou por chocar-se frontalmente com o art. 24, § 2º, ns. 1 e 2, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, nosso parecer é pela procedência da ação.

São Paulo, 23 de setembro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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