Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0117847-72.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Catanduva

 

 

 

                            Ementa:          

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 5.402, de 23 de abril de 2012, do Município de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe da obrigatoriedade da presença de cobrador de ônibus no transporte coletivo urbano de passageiros, em toda extensão da área do município e dá outras providências”

2)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, 120 e 144 da Constituição do Estado). Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura da adequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão (art. 25 e 117 da Constituição Estadual). 

3)      Parecer pela procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Catanduva, tendo como alvo a Lei nº 5.402, de 23 de abril de 2012, daquele município, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe da obrigatoriedade da presença de cobrador de ônibus no transporte coletivo urbano de passageiros, em toda extensão da área do município e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por: violação do princípio da separação dos poderes, conter vício de iniciativa e importar em aumento de despesas decorrente do desequilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão do serviço público. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição Estadual.

Foi deferida a liminar para suspender, com efeito ex nunc, a vigência e eficácia da Lei nº 5.402, de 23 de abril de 2.012, do Município de Catanduva, (fls. 22/24).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 31/33.

Citado regularmente (fl. 54), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 56/57).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 5.402, de 23 de abril de 2.012, do Município de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe da obrigatoriedade da presença de cobrador de ônibus no transporte coletivo urbano de passageiros, em toda extensão da área do município e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arst. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, 117 e 120 da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Artigo 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

 

(...)

Artigo 120 - Os serviços públicos serão remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na forma que a lei estabelecer”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A forma e condições de prestação do serviço público, seja de forma direta ou indireta, como é o caso do transporte coletivo de passageiros realizado no Município de Catanduva, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo. De outro lado, incumbe também ao Poder Executivo a instituição da política tarifárias dos serviços públicos (art. 120 da Constituição Estadual).

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da proibição imposta aos motoristas de ônibus de exercerem simultaneamente a função de cobrador, nas empresas concessionárias do serviço de transporte coletivo do Município de Catanduva, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

 De outro lado, acabou estipulando a obrigação nas empresas concessionárias do serviço de transporte coletivo do Município de manter sempre dois tripulantes em cada veículo, sendo um motorista e um cobrador. Dessa forma, a Câmara Municipal alterou o próprio regime de concessão ou de permissão de serviços públicos e dispôs de maneira autônoma sobra matéria de competência privativa do Poder Executivo, contrastando com o princípio da separação dos poderes insculpido no art. 5º da Constituição Estadual.

A modificação das condições da prestação do serviço público concedido, cabe privativamente ao Poder Executivo, haja vista necessidade de avaliar e decidir acerca da conveniência e oportunidade da alteração haja vista as consequências financeiras decorrente da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico do contrato (art. 117 da Constituição Estadual).

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da organização e regulamentação dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes e da gestão dos contratos de concessão de serviços públicos, previstas na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, 117 , 120 e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regular condições da prestação de um serviço público municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

O ato normativo impugnado importa em modificação das condições da prestação do serviço público que teve no processo de licitação a definição precisa de seu objeto.

Assim, alteradas as condições da prestação do serviço concedido haveria obrigatoriedade da adequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão (art. 117 da Constituição Estadual) , não tendo sido indicados especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na prestação do serviço público concedido, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 117, 120 e  176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Vale ressaltar que esse Colendo Órgão Especial já se pronunciou a respeito da matéria. Senão vejamos:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VÍCIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de membro do Poder Legislativo que dispõe sobre a impossibilidade de motoristas de ônibus exercerem simultaneamente a função de cobrador nas empresas de transporte coletivo. Matéria relativa à prestação de serviço público e de cunho eminentemente administrativo ou de função típica da Administração Pública. Matéria que é de iniciativa do chefe do Poder Executivo. Ofensa aos arts. 5°, "caput" e 47, II, XIV e XVIII e art. 144 todos da CESP e arts. 2o, 61, § Io, II, "b" e 84, II, todos da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADIN n° 0503048-61.2010, Rel. Des. Mac Cracken, j. 25 de maio de 2011)

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 5.402, de 23 de abril de 2.012, do Município de Catanduva.

 

São Paulo, 05 de setembro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

aca