Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 0119431-77.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Sorocaba
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba
Ementa:
1) Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei nº 10.446, de 02 de maio de 2013, do
Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Institui o Programa de Trânsito Faixa Viva no âmbito do município de
Sorocaba”.
2) Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).
3) Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 10.446, de 02 de maio de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Institui o Programa de Trânsito Faixa Viva no âmbito do município de Sorocaba”.
Foi
deferida liminar para suspender a eficácia do ato normativo impugnado (fl.
191), decisão da qual houve agravo regimental, julgado improvido (fls.
259/262).
Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 269/280, defendendo a validade do ato normativo impugnado.
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
Preliminarmente, observo que não foi citado o Procurador-Geral do Estado, para a defesa da norma objurgada, medida que ora fica postulada, em atenção ao disposto no art. 90, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo.
No mérito, procede o pedido.
A Lei nº 10.446, de 02 de maio de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Institui o Programa de Trânsito Faixa Viva no âmbito do município de Sorocaba”, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:
“Art. 1° Fica instituído, no
município de Sorocaba, o Programa de Trânsito "Faixa Viva", cuja ação
tem caráter contínuo e permanente.
Art. 2° O programa "Faixa
Viva" de que trata esta Lei tem por objetivos:
I - mudar o comportamento, a cultura
e o hábito dos motoristas, motociclistas e pedestres;
II - conscientizar os motoristas e
motociclistas da preferência do pedestre numa faixa de travessia onde não há
semáforos, conforme preceitua o art. 70 do Código de Trânsito Brasileiro;
III. - a educação, harmonia ao
trânsito e o respeito entre motoristas e pedestres, com resgate de valores que
devem ser multiplicados espontaneamente entre os munícipes, a partir da nova
postura dos motoristas e pedestres;
IV - informar que o Código de
Trânsito Brasileiro, em seu art. 214, tipifica como infração gravíssima e
sujeita a multa, quem deixar de dar preferência de passagem a pedestre:
a) que se encontre na faixa a ele
destinada;
b) que não haja concluído a travessia
mesmo que ocorra sinal verde para os veículos; e
c) portadores de deficiência física,
crianças, idosos e gestantes.
V - informar que o Código de Trânsito
Brasileiro, em seu art. 254, tipifica como infração sujeita a multa, pedestre
que:
a) atravessar a via fora da faixa
própria; e
b) iniciar travessia da rua
quando ocorra sinal verde para os veículos.
Art. 3° O Programa de Trânsito
"Faixa Viva" de que trata esta Lei, estabelece, entre outras, as
seguintes ações:
I - ao pedir a prioridade na travessia
em faixa sem semáforo, o pedestre deve, ainda na calçada, estender o braço com
a palma da mão virada para os automóveis. A travessia só deve ser feita quando
os carros pararem;
II - ao avistar um pedestre
solicitando a preferência na travessia, os motoristas, por sua vez, devem agir
como se o semáforo estivesse no sinal amarelo e acompanhar a movimentação dos
outros veículos pelo retrovisor.
Art. 4° As ações que viabilizarão a transposição dos
pedestres nestes locais ficarão a cargo do Poder Público Municipal podendo
celebrar parcerias com o Comando da Polícia Militar, Conselhos Comunitários de
Segurança Pública e Associações de Bairros entre outros.
Art. 5º As despesas com a execução da presente Lei
correrão por conta das verbas próprias consignadas no orçamento.
Art. 6° Esta Lei entre em vigor na data de sua publicação.”
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não
implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)”
A matéria disciplinada pela lei
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos
Secretários Municipais.
O “Programa de Trânsito Faixa Viva” instituído pelo ato normativo impugnado, que visa orientação e educação dos munícipes quanto às regras de trânsito, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da criação de programa de orientação e educação dos munícipes quanto às regras de trânsito municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação de serviços em benefício dos munícipes. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao instituir serviço municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV,
no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à
organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada
da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na
medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida ao instituir o programa de trânsito “Faixa Viva” não indicou os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e no 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
Cabe ainda ressaltar que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.
Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.
Criar programas para os cidadãos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.
A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
A utilização recorrente de leis autorizativas tem objetivos de cunho nitidamente políticos, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 10.446, de 02 de maio de 2013, do Município de Sorocaba.
São Paulo, 04 de dezembro de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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