Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0120596-62.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Iacanga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Iacanga

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1.351, de 25 de abril de 2013, do Município de Iacanga, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de Comissões de Saúde especializada em usuários de drogas, para atendimento de vítimas de drogas em geral, e, em especial, do Crack e dá outras providências”.

2)      Inconstitucionalidade. Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). 

3)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 1.351, de 25 de abril de 2013, do Município de Iacanga, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a criação de Comissões de Saúde especializada em usuários de drogas, para atendimento de vítimas de drogas em geral, e, em especial, do Crack e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, por violar o princípio da separação dos poderes e por criar despensas sem indicar a origem de recursos no orçamento. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, 25, 47, II, XIV e XIX, “a”, e 176, I da Constituição Estadual.

Notificado regularmente, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações às fls. 31/35, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Citado à fl. 60, o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 62/63).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 1.351, de 25 de abril de 2013, do Município de Iacanga, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

 

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabem ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A instituição no município de programas e serviço para o atendimento especializado aos usuários de drogas e atendimento de vítimas de drogas em geral é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da disciplina do serviço especializado para atendimento a usuários e vítimas de drogas em geral, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Verifica-se que a iniciativa parlamentar não se limitou a estabelecer genericamente obrigação do Poder Executivo para atuar no atendimento a usuários e vítimas de drogas, mas disciplinou o serviço e os programas de forma específica dispondo sobre o atendimento pelo setor de saúde (arts. 2º ao 4º) e impôs obrigações e atribuições a órgãos administrativos municipais (arts. 5º ao 9º).

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação de serviços em benefício dos munícipes. Trata-se de atuação administrativa queé fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao instituir serviço municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida, ao impor ao Município a criação de um sistema de atendimento especializado aos usuários e vítimas de drogas, determinando a realização de programas de orientação e conscientização, especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.

Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Diante do exposto, observada a providência reclamada na preliminar, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.351, de 25 de abril de 2013, do Município de Iacanga.

 

              São Paulo, 10 de setembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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