Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0123998-54.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Sorocaba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 10.389, de 06 de março de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Dá nova redação ao § 2º do Art. 1º da Lei n° 8.175, de 31 de maio de 2007 que institui a bolsa-atleta e dá outras providências”.

2)      A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

3)      Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 24, § 2º, 2, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 10.389, de 06 de março de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “Dá nova redação ao § 2º do Art. 1º da Lei n° 8.175, de 31 de maio de 2007 que institui a bolsa-atleta e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa e violação do princípio da separação dos poderes. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 24, § 2º e § 5º, 25, 47, II, e 144, da Constituição Estadual, nos arts. 2º, 61, § 1º, 63, I, e 84, II e III, da Constituição Federal e aos arts. 37, 38 e 61 da Lei Orgânica do Município.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender, com eficácia ex nunc, a vigência do ato normativo impugnado (fl. 164).

Citado regularmente, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 246/248).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal interpôs agravo, defendendo a validade do ato normativo impugnado, (fls. 172 e s.), que foi desprovido (fls. 239/242).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Constata-se que a inicial alega, além da ofensa à Constituição Estadual, afronta à Lei Orgânica Municipal e à Constituição Federal.

Todavia, em ação direta, perante o Tribunal de Justiça Estadual, o parâmetro de inconstitucionalidade de leis e atos normativos municipais é a Constituição Estadual.

Eventual compatibilidade da lei local com dispositivos da Lei Orgânica do Município ou com a Constituição Federal não merece cognição nesta via, pois, o contencioso de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da Constituição Federal (art. 125, § 2º, Constituição Federal).

Já se decidiu que é “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).

O pedido, todavia, é procedente.

A Lei nº 10.389, de 06 de março de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“LEI Nº 10.389, DE 06 DE MARÇO DE 2013

Dá nova redação ao § 2º do Art. 1º da Lei n° 8.175, de 31 de maio de 2007 que institui a bolsa-atleta e dá outras providências.

Projeto de Lei n.º 411/2012, de autoria do Vereador Mário Marte Marinho Júnior

José Francisco Martinez, Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba, de acordo com o que dispõe o § 8º, do Art. 46, da Lei Orgânica do Município de Sorocaba, e o § 4º do Art. 176 da Resolução nº 322, de 18 de setembro de 2007 (Regimento Interno) faz saber que a Câmara Municipal de Sorocaba decreta e eu promulgo a seguinte Lei:

Art. 1° O § 2° do Art. 1° da Lei n° 8.175, de 31 de maio de 2007 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1º...

§ 1º...

§ 2º Para efeito do disposto no § 1° deste artigo, ficam criadas as seguintes categorias de atletas:

I - categoria Atleta Regional, compreendendo atletas que participam de competição esportiva em âmbito regional;

II - categoria Atleta Estadual, compreendendo atletas que participam de competição esportiva em âmbito estadual;

III - categoria Atleta Estadual, compreendendo os atletas classificados até o 3° (terceiro) lugar no Campeonato Paulista de handebol em cadeira de rodas." (NR)

Art. 2° As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de verba orçamentária própria.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

A CÂMARA MUNICIPAL DE SOROCABA, aos 06 de março de 2013.

JOSÉ FRANCISCO MARTINEZ

Presidente

Publicada na Secretaria Geral da Câmara Municipal de Sorocaba, na data supra.-

JOEL DE JESUS SANTANA

Secretário Geral”.

Verifica-se que a Lei Municipal impugnada altera a Lei Municipal (Lei n° 8.175, de 31 de maio de 2007) que institui a bolsa-atleta.

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A providência determinada pela lei é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. O poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), por serem privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, quando ele mesmo não pudesse discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao determinar providência administrativa, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida não indicou de forma adequada os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos.

Não se aplica à hipótese, porém, o disposto no art. 24, § 5º, 1, uma vez que se trata de projeto de iniciativa parlamentar.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 10.389, de 06 de março de 2013, do Município de Sorocaba.  

São Paulo, 11 de novembro de 2013.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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