Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0127448-05.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal da Estância Hidromineral de Poá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal da Estância Hidromineral de Poá

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.615, de 23 de maio de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre proibição de instalação de radares eletrônicos no Município de Poá.

2)      A fiscalização do trânsito é matéria de competência privativa do Poder Executivo, que por seu órgão executivo de trânsito, tem o poder/dever de cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições.

3)      Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 3.615, de 23 de maio de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre proibição de instalação de radares eletrônicos no Município de Poá.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violar o princípio da separação dos poderes, constituir ingerência na  Administração Pública e usurpar competência do Poder Executivo. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender, com eficácia ex nunc, a vigência do ato normativo impugnado (fls. 46/50).

Citado regularmente (fl. 58), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 61/63).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações, defendendo a validade do ato normativo impugnado, (fls. 65/71).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 3.615, de 23 de maio de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º Fica proibida a instalação de radares fotográficos fixos ou móveis para a medição de velocidade de veículos automotores, em todo o município de Poá.              

 Art. 2º As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

 Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

Verifica-se que a lei municipal impugnada, de autoria parlamentar, proíbe a instalação de radares fotográficos fixos ou móveis para a medição de velocidade de veículos automotores, disciplinando matéria relativa a fiscalização do trânsito no Município de Poá.

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e no art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A providência determinada pela lei é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. O poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da proibição do exercício da fiscalização do trânsito por meio de radares fotográficos fixos ou móveis, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da providência determinada pela lei. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), por serem privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, quando ele mesmo não pudesse discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao determinar providência administrativa, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Importante ainda consignar que as regras de trânsito no âmbito municipal, atendidas as regras gerais do Código de Trânsito Brasileiro, encontram-se na gestão administrativa da Cidade, privativa do Poder Executivo.

Nos termos do art. 21, VI, do Código de Trânsito Brasileiro, compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, executar a fiscalização de trânsito, autuar, aplicar as penalidades de advertência, por escrito, e ainda as multas e medidas administrativas cabíveis, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar.

A atividade de fiscalização de trânsito – definida no Código de Trânsito Brasileiro (Anexo I - Dos conceitos e definições) consiste no  “ato de controlar o cumprimento das normas estabelecidas na legislação de trânsito, por meio do poder de polícia administrativa de trânsito, no âmbito de circunscrição dos órgãos e entidades executivos de trânsito e de acordo com as competências definidas neste Código.

 Neste sentido dispõe o Código de Trânsito Brasileiro ao estabelecer que:

 “Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;

(...)

VI - executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito;

(...)

Evidente que se trata de atribuição conferida a órgão do Poder Executivo, pela própria dicção do termo utilizado “órgão executivo de trânsito”, portanto, inviável sua regulamentação por iniciativa do Poder Legislativo.

Os problemas decorrentes do trânsito nas cidades exigem estudo e planejamento para a adequada solução dos transtornos que podem provocar aos munícipes, atividades relacionadas à gestão administrativa.

Por este motivo, cabe essencialmente ao Poder Executivo, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade do controle de velocidade através da instalação de radares fotográficos. A atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.615, de 23 de maio de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá.  

 

São Paulo, 25 de setembro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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