Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0128604-28.2013.8.26.0000

Requerente: Diretório Estadual do Partido Popular Socialista

Requeridos: Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Santa Fé do Sul

 

 

                            Ementa:          

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 43, IV, § 1º, II e § 7º, II, da Lei Complementar nº 111, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé do Sul que impõe como condição para aprovação de projetos de parcelamento do solo a destinação de áreas dominiais.

2)      Preliminar. Necessidade de comprovação da representatividade do Partido Popular Socialista na Câmara Municipal de Santa Fé do Sul. (art. 90, VI, da Constituição Estadual)

3)      Usurpação da competência legislativa concorrente da União e do Estado (art. 24, I, da CF), com violação do princípio federativo (CE, art. 1º). Não é o Município competente para legislar sobre direito urbanístico instituindo destinação de áreas públicas não contempladas na disciplina dada pela lei federal ao parcelamento do solo urbano.

4)      A exigência de destinação de áreas dominiais não se insere na atividade legislativa urbanística municipal complementar que deve ter por objetivo assegurar aos loteamentos os equipamentos e as condições mínimas de habitabilidade e conforto, bem como harmonizá-los com o Plano Diretor do Município para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes.

5)      A imposição de perda da propriedade, em prol de entidade municipal, não configura limitação de ordem urbanística, mas sim indevido confisco da propriedade privada com violação ao direito de propriedade (art. 5º caput, e XXII da Constituição Federal).

6)      Não se mostra razoável e moral exigir destinação de áreas para compor o patrimônio dominial do Município haja vista falta de compatibilidade da imposição com o ordenamento urbanístico e bem estar da população atingida pelo empreendimento imobiliário. Violação do art. 111 da Constituição Estadual. 

7)      Parecer pela procedência do pedido.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Diretório Estadual do Partido Popular Socialista, tendo como alvo o art. 43, IV, § 1º, II e § 7º, II, da Lei Complementar nº 111, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé do Sul, que dispõe sobre o plano diretor de desenvolvimento sustentável da Estância Turística de Santa Fé do Sul.

Sustenta o requerente que os dispositivos legais impugnados são inconstitucionais por violação ao direito de propriedade e por violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º caput, XXI e XXIV, da Constituição Federal e arts. 111 e 144 da Constituição Estadual.

Foi indeferida às fls. 91/92.

Devidamente notificado (fls.108), o Prefeito Municipal apresentou informações sustentando a validade dos dispositivos legais impugnados.

O Presidente da Câmara Municipal foi notificado a fl. 109 e apresentou informações a fls. 125/126, afirmando que os dispositivos legais impugnados não violam o direito de propriedade.

Citado regularmente (fl. 107), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 111/112).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

PRELIMINARMENTE

Nos termos do art. 90, VI, da Constituição Estadual parte legítima para propositura da ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal contestado em face da Constituição Estadual é o partido político com representação na respectiva Câmara.

Não há nos autos prova de que o Partido Popular Socialista tenha representação na Câmara Municipal de Santa Fé do Sul.

Desta forma, sob pena de indeferimento da inicial, r. seja o requerente intimado para comprovação de que possui representação na Câmara Municipal de Santa Fé do Sul.

NO MÉRITO

Procede o pedido.

O art. 43, IV, § 1º, II e § 7º, II, da Lei Complementar nº 11, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé, tem a seguinte redação:

“Art.43 – Da área total de um projeto de parcelamento urbano ou de expansão urbana, serão destinados, no mínimo:

(...)

IV. 5% (cinco por cento) para áreas dominiais.

§ 1º – A porcentagem de áreas públicas, referidas neste artigo para parcelamento de gleba com área superior a 15.000 m2 (quinze mil metros quadrados), ressalvados os casos expressos na presente lei, não poderá ser inferior a 40% (quarenta por cento) da gleba objeto do parcelamento, exceto nos casos de desmembramento, ocasião em que o percentual a ser fixado não poderá ser inferior a 15% (quinze por cento), distribuído da seguinte forma: (redação dada pela LC. 224, de 19/07/2012)

(...)

II) 10% (dez por cento) para áreas dominiais.

(...)

§ 7º - O parcelamento de glebas com áreas inferiores a 15.000 m2, (quinze mil metros quadrados), deverá obedecer a seguinte tabela para a destinação de áreas públicas: (redação dada pela LC.228/2012).

(...)

II- Glebas de 4.000,01 m2 até 15.000,00 m2 (quinze mil metros quadrados) será destinado 10% (dez por cento) do total da área para uso dominial.”

Os atos normativos acima transcritos violam o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências, (arts. 1º e 144, da Constituição Paulista).

Os dispositivos legais impugnados estabelecem como condição para aprovação dos projetos de parcelamento do solo destinação de áreas dominiais além das áreas públicas previstas na Lei nº 6.766/79 (as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público).

A matéria objeto dos dispositivos legais impugnados é de competência legislativa concorrente da União e do Estado nos termos do art. 24, I, da Constituição Federal que estabelece que cabe a União e aos Estados legislar concorrentemente sobre direito urbanístico. No âmbito dessa legislação concorrente, sua competência se limitará a estabelecer normas gerais (art. 24, § 1º, da Constituição Federal)

A Lei n 6.766/79 que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras Providências disciplinou de forma exaustiva quais são as áreas públicas que podem ser exigidas em um projeto de parcelamento do solo.

Os Municípios podem estabelecer normas complementares relativas ao parcelamento do solo municipal para adequar o previsto na Lei nº 6.766/79 às peculiaridades regionais e locais (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 6.766/79). No entanto, tal competência deve ser exercida nos termos da lei federal e nos limites do interesse local.

Não se verifica, porém, que a condição de destinação de áreas dominiais em projetos de parcelamento do solo seja necessária para adequação da lei federal às peculiaridades locais.

De outro lado, a exigência de destinação de áreas dominiais não se insere na atividade legislativa urbanística municipal complementar que deve ter por objetivo assegurar aos loteamentos os equipamentos e as condições mínimas de habitabilidade e conforto, bem como harmonizá-los com o Plano Diretor do Município para o do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes.

Os requisitos urbanísticos para o projeto de parcelamento do solo foram definidos na lei federal (art. 4º da Lei nº 6.766/79). Dentre eles, as áreas públicas a serem reservadas foram disciplinadas de forma exaustiva, não contemplando destinação de áreas dominiais. Ao Município conferiu-se apenas a possibilidade de estabelecer em lei o percentual das referidas áreas que deverão ser proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situem.

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, e aos Estados sem espaço aos Municípios, a competência para legislar sobre direito urbanístico (art. 24, I, da Constituição Federal).

O trato da matéria, visualizada numa perspectiva abrangente e múltipla, envolve regras gerais para uso e ocupação do solo de forma a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes, demandando, por isso mesmo, uma disciplina normativa uniforme para todo território nacional e aplicável a todos os Municípios.

Sobre a matéria, a União no uso de sua competência de legislar (CF, art. 24, I) editou a Lei nº 6.766/79, estabelecendo os requisitos gerais para um projeto de loteamento, dentre os quais áreas públicas devem ser reservadas.

Não contempladas as áreas dominiais, está vedado aos Municípios, no exercício de sua competência complementar, exigi-las, haja vista que não se trata de adequação da normatização federal ás peculiaridades locais, haja vista que obviamente todo o município no país teria interesse em poder exigir áreas dominiais em projetos de parcelamento do solo.

Tal possibilidade é contrária aos princípios da Administração Pública, sobretudo, ao da moralidade.

Nem se alegue a existência de interesse local ou autonomia municipal para simples disciplina do uso e ocupação do solo urbano. A questão, como exposta, demonstra a inocorrência da predominância – chave-mestra para delimitação da autonomia local – na medida em que não se cinge às peculiaridades de cada comuna o estabelecimento de exigência de destinação de áreas dominiais em projetos de parcelamento do solo urbano. Deste modo, normas desta natureza são da órbita de competência normativa federal.

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar concorrentemente ou suplementar a legislação federal, invadir a competência legislativa deste ente federativo superior (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

Sobre a matéria específica manifestou-se o Supremo Tribunal Federal que:

"A criação, a organização e a supressão de distritos, da competência dos Municípios, faz-se com observância da legislação estadual (CF, art. 30, IV). Também a competência municipal, para promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano – CF, art. 30, VIII – por relacionar-se com o direito urbanístico, está sujeita a normas federais e estaduais (CF, art. 24, I). As normas das entidades políticas diversas – União e Estado-membro – deverão, entretanto, ser gerais, em forma de diretrizes, sob pena de tornarem inócua a competência municipal, que constitui exercício de sua autonomia constitucional." (ADI 478, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 9-12-2006, Plenário, DJ de 28-2-1997.)

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que o art. 43, IV, § 1º, II e § 7º, II, da Lei Complementar nº 111, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé, violou o princípio da repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto nos arts. 1º, 5º e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

Importante ainda ressaltar que não se pode negar a competência municipal para planejar e controlar a utilização, o parcelamento e a ocupação do solo urbano.

Aliás, tem-se entendido que a Municipalidade tem o dever e não a mera faculdade de disciplinar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo, sobretudo para assegurar o respeito aos padrões urbanísticos e o bem-estar da população. Assim se decidiu, por exemplo, no julgamento do recurso especial n. 448.216/SP, proferido pela Primeira Turma do STJ, em acórdão da lavra do Ministro Luiz Fux.

Porém, não se deve confundir esse dever do município, que se concretiza mediante exigências para a implantação de loteamentos, com exigências que não estão relacionadas aos padrões urbanísticos e ao bem estar da população.

No caso em discussão, o município extrapolou os limites da sua competência constitucional ao impor exigência que, bem analisada, determina a perda da propriedade particular.

O direito de propriedade é assegurado no caput do art. 5º da Constituição Federal e não pode ser violado fora dos limites constitucionais.

A imposição da perda da propriedade privada por lei municipal afronta a Constituição Federal porque, repita-se, não representa a imposição de uma limitação de caráter urbanístico, o que seria válido, como decidiu a Primeira Turma do STJ, ao enfrentar o recurso especial n. 474.475/SP:

 “Compete ao Município legislar sobre questões atinentes a interesse local, dentre eles, promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Conclui-se, portanto, que a população sujeita-se às limitações urbanísticas impostas pelo Poder Público, que, in genere, são realizadas em prol do interesse coletivo” – grifos nossos.

A imposição de perda da propriedade, em prol de entidade municipal, por mais louvável que seja sua atuação, não configura limitação de ordem urbanística, mas sim indevido confisco da propriedade privada.

A propósito do tema esse Colendo Órgão Especial em arguição de inconstitucionalidade já decidiu que:

“Inconstitucional a parte final do artigo 5º da Lei riopretana nº 5.138, dos 28 de dezembro de1992, que condiciona a aprovação de loteamento à doação de cinco por cento da área loteada para fins dominicais.” (Argüição de inconstitucionalidade nº 990.10.354575-3 – Rel Des. Barreto Fonseca , julgado em 01 de setembro de 2010)

A competência legislativa municipal, como se sabe, é questão constitucional e está disciplinada no art. 30 da Lei Maior. Dispõe o inciso VIII do referido dispositivo constitucional que compete aos municípios promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.

Portanto, a inconstitucionalidade, também decorre da violação ao art. 30, VIII, da Constituição Federal, pois os dispositivos legais impugnados ao exigirem a destinação de áreas dominiais em projetos de parcelamento do solo, extrapola os limites da competência municipal traçados pela Lei Maior.

Por fim, o ato impugnado viola também o princípio da razoabilidade previsto no art. 111 da Constituição Estadual.

A razoabilidade serve como parâmetro no controle da legitimidade substancial dos atos normativos, requerente de compatibilidade aos conceitos de racionalidade, justiça, bom senso, proporcionalidade etc., vedando imposições e discriminações injustificáveis e, por isso, desarrazoadas.

Não parece razoável em projetos de loteamento, exigir, além das áreas públicas previstas e discriminadas na Lei nº 6.766/79, destinação de áreas a integrar o patrimônio dominial do município. Tal imposição além de excessiva e não razoável ou proporcional não está informada pelo interesse público haja vista não tem qualquer vínculo com o ordenamento urbanístico e o bem estar da população atingida pelo empreendimento imobiliário. Neste aspecto parece também sacrificar o princípio da moralidade que se presta à mensuração da conformidade do ato estatal com valores superiores (ética, boa fé, finalidade, boa administração etc.), vedando atuação da Administração Pública pautada por móveis ou desideratos alheios ao interesse público (primário) – ou seja, censura o desvio de poder que também tem a potencialidade de incidência nos atos normativos.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 43, IV, § 1º, II e § 7º, II, da Lei Complementar nº 111, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé do Sul.

São Paulo, 10 de outubro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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