Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0129803-85.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Regente Feijó

Requerido: Presidente da Câmara de Regente Feijó

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda nº 001/2007 à Lei Orgânica Municipal de Regente Feijó, que (a) autoriza a incorporação de gratificações pagas a servidores efetivos designados para cargos em comissão, e (b) determina o pagamento de complementação de aposentadoria a servidores inativos em decorrência da aludida situação.

2)      Reserva de iniciativa do Chefe do Executivo em matéria de fixação de remuneração do funcionalismo e regime jurídico dos servidores públicos. Impossibilidade de esvaziar-se a reserva de iniciativa com a utilização da Emenda à lei Orgânica Municipal. Inconstitucionalidade por contrariedade ao disposto no art. 24, § 2º, ns. 1 e 4 da Constituição Paulista, aplicável por força do at. 144 da mesma Carta.

3)      Impossibilidade de criação de benefício previdenciário sem a indicação da correspondente fonte de custeio total. Contrariedade ao disposto no art. 144 e 218 da Constituição do Estado e, por força destes, ao princípio estabelecido assentado no art. 195, § 5º, da CF.

4)      Contrariedade à moralidade administrativa e ao interesse público (art. 111 e 128 da Constituição do Estado).

5)      Parecer no sentido da procedência da ação direta.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Emenda à Lei Orgânica Municipal de Regente Feijó nº 001/2007, que alterou a redação do inciso XII, XVIII, e XLI do art. 135 da Lei Orgânica Municipal, passando a permitir a incorporação de diferenças salariais por parte de servidores públicos municipais efetivos, em razão de terem ocupado cargos comissionados, bem como prevendo a complementação de aposentadoria de servidores, em decorrência da incorporação de diferenças.

Alega o requerente a ocorrência de conflito entre o ato impugnado e a legislação orçamentária do Município, bem como em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), tendo em vista que a alteração legislativa ocorreu sem que tenha sido realizado estudo de impacto financeiro.

Aduz, ainda, a existência de: (a) vício de iniciativa (art. 61, § 1º, II, a da CF; art. 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Paulista); (b) ofensa à regra pela qual não é possível criar benefício sem fonte de custeio total remetendo ao art. 40 da CR; (c) violação dos artigos 111, 128 e 218 da Constituição Paulista, bem como art. 195, § 5º, da CF.

Foi indeferido o pedido de liminar (fl. 128).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar defesa do ato normativo (fls. 135, 138/140).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações, sustentando a constitucionalidade do ato normativo (fls. 142/150).

É o relato do essencial.

PRELIMINAR: IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DE PARÂMETROS INFRACONSTITUCIONAIS OU CONTIDOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Averbe-se, inicialmente, que não é possível, nesta ação, examinar a alegação de que o ato normativo impugnado contraria a Constituição Federal, ou mesmo dispositivos contidos na legislação infraconstitucional, seja ela federal, estadual, ou do próprio Município.

É que a cognição do tribunal, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, está limitada à verificação da ofensa direta à Constituição do Estado, ficando excluída a possibilidade de análise de inconstitucionalidades indiretas ou reflexas, ou mesmo de questões de fato.

Nesse sentido, confira-se o entendimento assente do STF nos seguintes precedentes, indicados exemplificativamente: ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-2003, Plenário, DJ de 20-4-2006; RE 597.165, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 4-4-2011, DJE de 12-4-2011.

A análise a ser aqui realizada, portanto, deve ficar limitada ao exame da existência de incompatibilidade entre a norma impugnada e a Constituição do Estado de São Paulo.

MÉRITO

A Lei Orgânica do Município de Regente Feijó foi alterada pela Emenda nº 001/2007, aqui impugnada, sendo certo que a modificação operada no art. 135, XII, XVIII e XLI, permitiu, concomitantemente, a incorporação de diferenças recebidas a título de gratificação, por parte de servidores efetivos que tiverem ocupado cargos de provimento em comissão, bem como a complementação de proventos de aposentadoria, em decorrência da percepção da referida gratificação em atividade.

É manifesta, nesse caso, a não observância da reserva de iniciativa do Chefe do Executivo local para a edição de lei tratando da remuneração, bem como modificando o regime jurídico do funcionalismo municipal, nos termos do art. 24, § 2º, ns. 1 e 4, da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

O Col. STF, interpretando e aplicando dispositivos análogos constantes da Constituição da República (o art. 61, § 1º, II, a e c) do qual os preceitos antes indicados da Constituição do Estado são mera reprodução, reiteradamente tem declarado a inconstitucionalidade de leis que tratam de regime jurídico do funcionalismo desrespeitando a reserva de iniciativa.

Confira-se:

“(...)

Dentre as regras básicas do processo legislativo federal, de observância compulsória pelos Estados, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes, encontram-se as previstas nas alíneas a e c do art. 61, § 1º, II, da CF, que determinam a iniciativa reservada do chefe do Poder Executivo na elaboração de leis que disponham sobre o regime jurídico e o provimento de cargos dos servidores públicos civis e militares. Precedentes: ADI 774, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 26-2-1999, ADI 2.115, rel. Min. Ilmar Galvão e ADI 700, rel. Min. Maurício Corrêa. Esta Corte fixou o entendimento de que a norma prevista em Constituição Estadual vedando a estipulação de limite de idade para o ingresso no serviço público traz em si requisito referente ao provimento de cargos e ao regime jurídico de servidor público, matéria cuja regulamentação reclama a edição de legislação ordinária, de iniciativa do chefe do Poder Executivo. Precedentes: ADI 1.165, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de14-6-2002 e ADI 243, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, DJ de 29-11-2002. Ação direta cujo pedido se julga procedente. (ADI 2.873, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 20-9-2007, Plenário, DJ de 9-11-2007.)

(...)

Processo legislativo: normas de lei de iniciativa parlamentar que cuidam de jornada de trabalho, distribuição de carga horária, lotação dos profissionais da educação e uso dos espaços físicos e recursos humanos e materiais do Estado e de seus Municípios na organização do sistema de ensino: reserva de iniciativa ao Poder Executivo dos projetos de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores públicos, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (art. 61, II, § 1º, c). (ADI 1.895, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-8-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007.)

(...)

Lei estadual que dispõe sobre a situação funcional de servidores públicos: iniciativa do chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, a e c, CR/1988). Princípio da simetria. (ADI 2.029, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4-6-2007, Plenário, DJ de 24-8-2007.)

(...)”

É possível que a posição acima seja objeto de contraposição, sob o argumento de que, tratando-se de Emenda à Lei Orgânica do Município, não seria necessário observar a reserva de iniciativa.

Esse raciocínio, entretanto, criaria um contorno à exigência constitucional taxativa de reserva de iniciativa do Executivo na matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos.

Em outras palavras, bastaria que, em todo e qualquer caso, fosse a iniciativa parlamentar deduzida através de proposta de Emenda à lei Orgânica para que em todos os casos de iniciativa reservada do Poder Executivo houvesse esvaziamento desta última.

Isso mostra, evidentemente, que a Lei Orgânica Municipal não é a sede legal própria para tratar da matéria, visto que o seu conteúdo é aquele previsto no art. 29 da CF, e nele não está incluído regular minuciosamente o regime jurídico do funcionalismo municipal.

Não bastasse essa inconstitucionalidade formal, a criação da complementação de aposentadoria sem fonte de custeio total, promovida pelo ato normativo impugnado através da nova redação dada ao art. 135, XLI, da Lei Orgânica Municipal de Regente Feijó, contraria princípio constitucional estabelecido, por força do qual é ilegítima, em perspectiva constitucional, a criação de benefício previdenciário sem previsão de fonte de custeio total (art. 195, § 5º, da CF, aplicável aos Municípios por força dos art. 144 e 218 da Constituição Paulista).

Pacífico é o entendimento a respeito da matéria, no E. STF, conforme inúmeros precedentes, aqui indicados a título de exemplificação: RE 485.940, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-2-07, DJ de 20-4-07; RE 419.954 e RE 414.741, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-2-07, DJ de 23-3-07; RE 492.338, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 9-2-07, DJ de 30-3-07; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06; entre outros.

A proibição de criação, majoração, ou extensão de benefício previdenciário sem a correspondente fonte de custeio total também têm sido afirmadas por esse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, como se infere dos seguintes julgados:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1703, de 10 de dezembro de 1990, que ‘Dispõe sobre a complementação de aposentadoria e pensão de servidores aposentados por tempo de serviço ou idade, das pensionistas e viúvas de ex-servidores aposentados ou falecidos enquanto na ativa e dá outras providências’. Criação de previdência complementar sem a definição de sua fonte de custeio integral. Vulneração dos artigos 144 e 218 da Constituição Estadual, pela ausência de estrita observância ao disposto no art. 195, § 5º, da Constituição Federal. Pedido julgado procedente (TJSP, ADI 153.965-0/5, rel. des. Oscarlino Moeller, j. 26.03.08, v.u.).

(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2969/93 do Município de Birigui, que dispõe sobre a denúncia de convênio firmado entre a Câmara Municipal de Birigui e o Instituto de Previdência do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. Ofensa aos art. 111, 144 e 218 da Carta Paulista. Necessidade de prévia e correspondente fonte de custeio para a criação, majoração ou extensão de benefício previdenciário. Inobservância do princípio da impessoalidade, diante da obtenção de vantagens de um grupo minoritário. Ação julgada procedente. (TJSP, ADI 151.936-0/9-00, rel. des. Penteado Navarro, j. 20.02.08, v.u.).

(...)”

E não é possível considerar como fonte de custeio suficiente, pura e simplesmente, a previsão legal de que o pagamento do benefício será feito com recursos constantes de dotação orçamentária própria. Isso significa, na prática, carrear todo o ônus financeiro ao erário municipal. Este acaba sendo o único a financiar o pagamento da complementação de aposentadoria dos procuradores municipais.

Deve-se levar em conta que a Constituição Federal estabelece, a propósito, a necessidade de respeito à diversidade da base de financiamento (art. 194, VI, da CF), bem como a participação, concomitante, de empregador e trabalhador (art. 195, I e II, da CF). Ademais, é impossível desconsiderar, finalmente, o caráter contributivo do sistema previdenciário (art. 201, caput, da CF).

A exigência de fonte de custeio total deve ser entendida como fonte de custeio que satisfaça os pressupostos do sistema estabelecido na Constituição Federal: (a) diversidade de base de financiamento; (b) caráter contributivo; (c) e participação de empregador e trabalhadores.

Assim, criar benefício por meio de lei, sem observar os parâmetros acima, que se resumem na necessidade de previsão de fonte de custeio total, significa violar frontalmente dispositivos constitucionais aplicáveis ao tema, em especial o art. 195, § 5º, da CF, aplicável à hipótese por força dos artigos 144 e 218 da Constituição Paulista.

Isso acaba significando, na prática, contrariedade ao art. 111 da Constituição Paulista, por violação da moralidade administrativa, bem como o art. 128 da Carta Estadual, por contrariedade ao interesse público.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Emenda à Lei Orgânica Municipal de Regente Feijó nº 001/2007.

 

São Paulo, 17 de setembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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