Processo n. 0131065-70.2013.8.26.0000
Requerente:
Diretório Estadual do Partido Democrático Trabalhista - PDT
Requeridos: Prefeito e Presidente
da Câmara Municipal de Barretos
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade em face dos cargos de provimento
e comissão de Assessor Administrativo, Assessor Técnico e Assessor de Gabinete,
previstos no Anexo II da Lei Complementar n. 101/2009,do Município de Barretos.
2) Cargos de provimento em comissão que não retratam atribuições de assessoramento, chefia e direção, senão funções técnicas, burocráticas, operacionais e profissionais a serem preenchidas por servidores públicos investidos em cargos de provimento efetivo. Inexigibilidade de especial relação de confiança. Violação de dispositivos da Constituição Estadual (art. 115, I, II e V, e art. 144).
3) Parecer pela procedência
parcial da ação.
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator,
Colendo Órgão Especial:
Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade, promovida pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT em
face dos cargos de provimento e comissão de Assessor Administrativo, Assessor
Técnico e Assessor de Gabinete, previstos no Anexo II da Lei Complementar n. 101/2009,
do Município de Barretos, que “Dispõe sobre a reorganização da estrutura
administrativa e o quadro de pessoal em comissão da Prefeitura do Município de
Barretos, Estado de São Paulo e dá outras providências”, sob argumento de
violação ao art. 37, II e V da Constituição Federal e aos arts. 115, II e V da
Constituição Estadual.
O pedido de medida liminar foi indeferido (fl. 143).
O Presidente da Câmara Municipal de
Barretos prestou informações e juntou documentos (fls. 165/219), que deixam
claro o posicionamento contrário em relação à criação dos cargos de provimento
em comissão impugnados.
O Prefeito Municipal de Barretos, por seu turno, deixou de
prestar informações (fls. 226).
O Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente aos atos normativos (fls. 224/225).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Realmente, os cargos de provimento em comissão impugnados, à exceção do de Assessor de Gabinete cujas atribuições revelam tratar-se de cargo de assessoramento direto ao Prefeito e ao Vice-Prefeito e indiretamente aos Secretários Municipais (fl. 72), não correspondem a funções de direção, chefia e assessoramento. São lotações que não se situam na administração superior, nem demandam a estrita confiança, cujas missões devem ser realizadas por servidores de carreira, até mesmo para não haver solução de continuidade por sucessão de administradores.
A previsão normativa desses cargos de provimento em comissão, como adiante se demonstrará, não condiz com o artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal, e ou com o artigo 115, incisos II e V, da Constituição Estadual.
Com
efeito, a Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa
indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização
político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1º, 18, 29, 30 e
34, VI, “c” da CF (cf. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, São
Paulo: Atlas, 7.ª ed., p. 261).
A
autonomia concedida aos Municípios
não tem caráter absoluto e soberano. Pelo contrário, encontra limites nos
princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que
instituíram a soberania de um povo (cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário
Jurídico”, Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1984, p. 251), sendo definida por
José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios,
dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que, no caso, é a
Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo:
Malheiros, 1992, p. 545).
A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a
elaboração de lei orgânica própria; (b)
autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras
Municipais; (c) autolegislação,
mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são
reservadas à sua competência exclusiva e suplementar; e (d) autoadministração ou administração própria, para manter e
prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p.
546).
Nessas quatro capacidades,
encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto
organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis
próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa
(administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia
financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas
rendas, que é uma característica da autoadministração) (ob. e loc. cits).
Para que possa exercer sua autonomia administrativa, o Município deve
criar cargos, empregos e funções, mediante atos normativos, instituindo
carreiras, vencimentos, entre outras questões, bem como se estruturando
adequadamente.
Todavia, a possibilidade de que o
Município organize seus próprios serviços encontra balizamento na própria ordem
constitucional, sendo necessário que o faça através de lei, respeitando normas
constitucionais federais e estaduais relativas ao regime jurídico do serviço
público.
A regra, no âmbito de todos os Poderes
Públicos, deve ser o preenchimento dos cargos através de concurso público de
provas ou de provas e títulos, pois assim se garante a acessibilidade geral
(prevista inclusive no art. 37, I, da Constituição Federal; bem como no art.
115, I da Constituição do Estado de São Paulo). Essa deve ser a forma de
preenchimento dos cargos de natureza técnica ou burocrática.
A criação de cargos de provimento em
comissão, de livre nomeação e exoneração, deve ser limitada aos casos em que
seja exigível especial relação de confiança entre o governante e o servidor,
para que adequadamente sejam desempenhadas funções inerentes à atividade
predominantemente política.
Há implícitos limites à criação, por
lei, de cargos de provimento em comissão, visto que assim não fosse, estaria na
prática aniquilada a exigência constitucional de concurso para acesso aos
cargos públicos.
A propósito, anota Hely Lopes
Meirelles, amparado em precedente do E. STF, que “a criação de cargo em
comissão, em moldes artificiais e não condizentes com as praxes do nosso
ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável
esvaziamento da exigência constitucional do concurso (STF, Pleno,
Repr.1.282-4-SP)” (Direito administrativo brasileiro, 33. ed., São Paulo,
Malheiros, 2007, p. 440).
Podem ser de livre nomeação e
exoneração apenas aqueles cargos que, pela própria natureza das atividades
desempenhadas, exijam excepcional relação de confiança e lealdade, isto é,
verdadeiro comprometimento político e fidelidade com relação às diretrizes
estabelecidas pelos agentes políticos, que vão bem além do dever comum de
lealdade às instituições públicas, necessárias a todo e qualquer servidor
comum.
É esse o fundamento da argumentação no
sentido de que “os cargos em comissão são próprios para a direção, comando ou
chefia de certos órgãos, onde se necessita de um agente que sobre ser de
confiança da autoridade nomeante se disponha a seguir sua orientação,
ajudando-a a promover a direção superior da Administração. Por essas razões
percebe-se quão necessária é essa fragilidade do liame. A autoridade nomeante
não pode se desfazer desse poder de dispor dos titulares de tais cargos, sob
pena de não poder contornar dificuldades que surgem quando o nomeado deixa de
gozar de sua confiança” (cf. Diógenes Gasparini, Direito administrativo, 3.
ed., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 208).
Daí a afirmação de que “é
inconstitucional a lei que criar cargo em comissão para o exercício de funções
técnicas, burocráticas ou operacionais, de natureza puramente profissional,
fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior” (cf. Adilson de
Abreu Dallari, Regime constitucional dos servidores públicos, 2. ed., 2. tir.,
São Paulo, RT, 1992, p. 41, g.n.).
É a natureza do cargo e as funções a
ele cometidas pela lei que estabelecem o imprescindível “vínculo de confiança”
(cf. Alexandre de Moraes, Direito constitucional administrativo, São Paulo,
Atlas, 2002, p. 158), que justifica a dispensa do concurso. Daí o entendimento
de que tais cargos devam ser destinados “apenas às atribuições de direção,
chefia e assessoramento” (cf. Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 5.
ed., São Paulo, RT, p. 317).
Essa também é a posição do E. STF
(ADI-MC 1141/GO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 10/10/1994, Pleno, DJ
04-11-1994, PP-29829, EMENT VOL-01765-01 PP-00169).
Escrevendo na vigência da ordem
constitucional anterior, mas em lição plenamente aplicável ao caso em exame,
anotava Márcio Cammarosano a existência de limites à criação de cargos em
comissão pelo legislador. A Constituição objetiva, com a permissão para criação
de tais cargos:
“propiciar
ao Chefe de Governo o seu real controle mediante o concurso, para o exercício
de certas funções, de pessoas de sua absoluta confiança, afinadas com as
diretrizes políticas que devem pautar a atividade governamental. Não é,
portanto, qualquer plexo unitário de competências que reclama seja confiado o
seu exercício a esta ou aquela pessoa, a dedo escolhida, merecedora da absoluta
confiança da autoridade superior, mas apenas aquelas que, dada a natureza das
atribuições a serem exercidas pelos seus titulares, justificam exigir-se deles
não apenas o dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e
administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários, como também um
comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos
agentes políticos, uma lealdade pessoal à autoridade superior (...). Admite-se
que a lei declare de livre provimento e exoneração cargos de diretoria, de
chefia, de assessoria superior, mas não há razão lógica que justifique serem
declarados de livre provimento e exoneração cargos como os de auxiliar
administrativo, fiscal de obras, enfermeiro, médico, desenhista, engenheiro,
procurador, e outros mais, de cujos titulares nada mais se pode exigir senão o
escorreito exercício de suas atribuições, em caráter estritamente profissional,
técnico, livres de quaisquer preocupações e considerações de outra natureza”
(Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo, RT, 1984, p.
95/96).
É incontestável que os cargos de
provimento em comissão de Assessor Administrativo e Assessor Técnico, cuja
validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam como cargos
ou função da administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e
assessoramento”, que exija relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes
traçadas pela autoridade nomeante, mas, sim, de cargos comuns, de natureza
profissional, que devem ser assumidos em caráter permanente por servidores
aprovados em concurso.
Além disso, os mesmo não possuem suas atribuições especificamente
descritas em lei.
Essa mácula é somada à percepção de que
esses cargos têm natureza inequivocamente técnica ou profissional própria dos
cargos de provimento efetivo, além do que, dada a estrutura administrativa do
município, revelam-se de terceiro ou quarto escalão, diante do organograma de
fls.
Cuidam-se, à evidência, de funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.
Observa-se também que para nenhum desses
cargos é exigida escolaridade de nível superior (fl. 66), aspecto que,
conjugado com as demais características dos cargos impugnados, reforçam a
natureza de unidades executórias de pouca complexidade, de nível subalterno,
sem poder de mando e comando superior e necessidade do elemento fiduciário para
seu desempenho, o que justificaria o provimento em comissão.
A propósito do nível de escolaridade
compatível com cargos de provimento em comissão, destacam-se os seguintes
julgados desse Colendo Órgão Especial:
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE -Legislações do Município que Alvares Machado que
estabelece a organização administrativa, cria, extingue empregos públicos e dá
outras providências - Funções descritas que não exigem nível superior para seus
ocupantes - Cargo de confiança e de comissão que possuem aspectos conceituais
diversos – Afronta aos artigos 111, 115, incisos II e V, e 144 da Constituição
Estadual — Ação procedente. (TJSP, ADIn 0107464-69.2012.8.26.0000,
Rel. Des. Antônio Carlos Malheiros, v.u., j. 12 de dezembro de 2.012)
AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE - Legislações do Município que Tietê, que dispõe sobre
a criação de cargos de provimento em comissão - Funções que não exigem nível
superior para seus ocupantes — Cargo de confiança e de comissão que possuem
aspectos conceituais diversos — Inexigibilida.de de curso superior aos
ocupantes dos cargos, que afasta a complexidade das funções - - Afronta aos
artigos 111, 115, incisos II e V, e 144 da Constituição Estadual — Ação
procedente.” (TJSP, ADIn 0130719-90.2011.8.26.000,
Rel. Des. Antônio Carlos Malheiros, v.u., j. 17 de outubro de 2.012)
Trata-se de prestação de serviços
auxiliares completamente desvinculados de qualquer política governamental
cumprindo tarefas de cunho geral não justificando excepcional caráter de
confiança.
Patenteado o divórcio de suas previsões na lei local impugnada com os arts. 111 e 115, II e V, da Constituição do Estado de São Paulo, in verbis:
“Art. 111. A administração pública
direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
(...)
Art. 115. Para a organização da
administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou
mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das
seguintes normas:
(...)
II - a investidura em cargo ou
emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou
de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado
em lei, de livre nomeação e exoneração;
(...)
V – as funções de confiança,
exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos
em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos,
condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às
atribuições de direção, chefia e assessoramento;
(...)”.
Para finalizar, lembra-se que o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça entende ser possível declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de cargos em comissão (ADIN n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA), cuja natureza não correspondia às características próprias dessas funções, daí porque, também aqui se impõe declarar a insubsistência dos seguintes cargos previstos nas leis impugnadas, por serem incompatíveis com os arts. 111; 115, incisos I, II e V e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.
Cabe também registrar que entendimento diverso do aqui sustentado significaria, na prática, negativa de vigência ao art. 115, incisos I, II e V, da Constituição Estadual, bem como ao art. 37 incisos I, II e V, da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre do art. 144 da Carta Estadual.
Diante disso, aguardo seja a presente
ação julgada parcialmente procedente, de sorte a declarar a
inconstitucionalidade dos cargos de provimento e comissão de Assessor Administrativo
e Assessor Técnico, previstos no Anexo II da Lei Complementar n. 101/2009, do
Município de Barretos, que “dispõe sobre a reorganização da estrutura
administrativa e o quadro de pessoal em comissão da Prefeitura do Município de
Barretos, Estado de São Paulo e dá outras providências”.
São Paulo, 13 de novembro
de 2013.
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb