Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0133848-35.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Guarujá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarujá

 

 

 

Ementa:

 

1)      Lei nº 3.975, de 12 de novembro de 2012, do Município de Guarujá, que “Dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos - 24 horas - nos prontos socorros municipal e nas unidades de pronto atendimento (upa) da rede pública de saúde, e dá outras providências”.

2)      A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

3)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2, 2, 47, II, XIV, XIX “a” e 144 da Constituição do Estado).

4)      Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Prefeita do Município de Guarujá, tendo como alvo a    Lei nº 3.975, de 12 de novembro de 2012, do Município de Guarujá, que “Dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos-24 horas - nos prontos socorros municipal e nas unidades de pronto atendimento (upa) da rede pública de saúde, e dá outras providências”, sob o argumento de violação aos arts. 5º, 25, 47, II e XVI, 144 e 174, caput, da Constituição do Estado de São Paulo.

Foi deferido o pedido de liminar para suspensão da Lei n. 3.975, de 12 de novembro de 2012, do Município de Guarujá (fls. 48/49).

Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 60/61).

O Presidente da Câmara Municipal de Guarujá apresentou informações às fls. 63/69, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Nestas condições vieram os autos para manifestação final.

A Lei n. 3.975, de 12 de novembro de 2012, do Município de Guarujá, apresenta a seguinte redação:

Art. 1º - Fica instituída a implantação da farmácia de distribuição de medicamentos 24 horas com funcionamentos nos Prontos Socorros Municipais e nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) da rede pública de saúde”.

Art. 2º - A farmácia de distribuição de medicamentos 24 horas terá funcionamento 24 horas (vinte e quatro horas) para distribuição de medicamentos, inclusive nos finais de semana e feriados.

Art. 3º - Ficam mantidas as demais farmácias de distribuição municipal durante o período de atendimento normas das unidades de saúde.

Art. 4º - as despesas decorrentes da aplicação desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 5º - O executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias, contados da data de sua publicação.

Art. 6º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

Verifica-se que a Lei Municipal impugnada institui a implantação da farmácia de distribuição de medicamentos 24 (vinte e quatro) horas nos prontos socorros municipais e nas unidades de pronto atendimento.

 O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto nos arts. 5; 24, § 2, 2, e 47, II e XIV e XIX, “a”, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 2º- Complete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

2- criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

XIX- dispor, mediante decreto, sobre:

a)     Organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação de órgãos públicos.

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A questão é objetiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a criação ou instituição de programas e serviços nas diversas áreas de gestão, envolvendo os órgãos da Administração Pública Municipal e a própria população.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando ou “autorizando o Poder Executivo a criar” novo programa de governo ou de serviço público, disciplinando-o total ou parcialmente, como ocorre, no caso em exame, em função da mencionada instituição da farmácia de distribuição de medicamentos 24 (vinte e quatro) horas, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Observa-se que o Poder Legislativo não se limitou à criação do programa, ao contrário, disciplinou-o de forma específica e impôs obrigações ao Poder Executivo (arts. 1º e 2º). 

A criação de serviços públicos com previsão de novas obrigações aos órgãos municipais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade de programas e de serviços públicos em benefício da população. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro Poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

Também prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A alínea a do inciso XIX desse art. 47, fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Pois, ao instituir programa ou serviço administrativo, de um lado, ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

Além disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida, ao instituir a implantação de farmácias de distribuição de medicamentos 24 (vinte e quatro) horas em prontos socorros municipais e nas unidades de pronto atendimento, não indica especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.

A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.

Diante do exposto, aguarda-se a integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade a         Lei nº 3.975, de 12 de novembro de 2012, do Município de Guarujá, que “Dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos - 24 horas - nos prontos socorros municipal e nas unidades de pronto atendimento (upa) da rede pública de saúde, e dá outras providências.”

São Paulo, 12 de setembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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