Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0135197-73.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal da Estância Hidromineral de Poá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal da Estância Hidromineral de Poá

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 948, de 28 de janeiro de 2011, do Município de Bertioga, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo a criar o programa de patrocínio aos atletas deficientes físicos e mentais e dá outras providências”. Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, e 144 da Constituição do Estado). Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo objeto a Lei nº 3.641, de 23 de maio de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, que “DISPÕE SOBRE A AUTORIZAÇÃO PARA CRIAÇÃO DE CASA TRANSITÓRIA DE ABRIGAMENTO PARA MULHERES VITIMIZADAS POR VIOLÊNCIA, NO ÂMBITO MUNICIPAL”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violação dos arts. 5º, 25, 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual.

O pedido liminar foi indeferido (fl. 35).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 45/51 defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 59/61).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 3.641, de 23 de maio de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

“Art. 1º. O Poder Executivo de Poá – SP., fica autorizado a criar a “Casa Transitória de Abrigamento para Mulheres Vitimizadas por Violência”, no âmbito municipal.

Art. 2º. O abrigamento na referida Casa Transitória será de caráter, provisório não podendo ultrapassar 72 (setenta de duas) horas para os devidos encaminhamentos e assistência necessários.

Art. 3º. O endereço do local da casa deverá ser sigiloso e de conhecimento apenas das autoridades policiais e do Judiciário, a fim de resguardar a segurança das abrigadas provisoriamente.

Art. 4º O funcionamento da casa deverá estar em sintonia com as políticas públicas municipais e em concordância com regulamentos a serem elaborados pela Secretaria da Mulher e do Conselho Municipal da Mulher.

Art. 5º As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta das verbas próprias do orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 6º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

A matéria disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A criação da “Casa Transitória de Abrigamento” é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode, por meio de lei, ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando a atuação administrativa, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação da “Casa Transitória”. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao instituir programa municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam a direção da administração, a organização e o funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples “lei autorizativa”, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"(...) insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Mana Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Concorre à inconstitucionalidade, de outra parte, a violação aos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado, porquanto da lei há geração direta de novas despesas, não previstas no orçamento em curso, estando desprovida da indicação dos recursos necessários para sua cobertura, e que não satisfaz com a tradicional cláusula de remissão “a conta de dotação orçamentária própria, suplementadas se necessário”.

Essa, aliás, foi a convicção externada em parecer emitido em ação direta de inconstitucionalidade combatendo norma assemelhada e que foi julgada procedente pelo colendo Órgão Especial deste egrégio Tribunal de Justiça em venerando acórdão assim ementado:

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre colocação de placas indicativas de nomes no perímetro urbano. Vício de iniciativa - Violação ao princípio da separação de Poderes (art. 5º, e art. 144 da Constituição Estadual) - Ingerência na competência do Executivo, por tratar de matéria que envolve plano de atuação governamental elaborado pelo Executivo - Lei, ademais, que não indica a fonte de custeio para a execução das obras e serviços relativos à colocação de placas indicativas (art. 25 da Constituição Bandeirante) - Ação procedente” (ADI 0076090-98.2013.8.26.0000, Rel. Des. Ênio Zuliani, v.u., 24-07-2013).

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.641, de 23 de maio de 2013, do Município da Estância Hidromineral de Poá, de iniciativa parlamentar, que “DISPÕE SOBRE A AUTORIZAÇÃO PARA CRIAÇÃO DE “CASA TRANSITÓRIA DE ABRIGAMENTO PARA MULHERES VITIMIZADAS POR VIOLÊNCIA, NO ÂMBITO MUNICIPAL”.

 

              São Paulo, 22 de novembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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