Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

 

Processo nº. 0138716-56.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Guarujá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarujá

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeita.  Lei nº 3.971, de 05 de novembro de 2012, do Município de Guarujá, que “Cria o serviço Cegonha móvel no município de Guarujá e dá outras providências”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. O controle abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a CE/89 (art. 125, § 2º, CF/88), sendo vedado o seu contraste com o direito infraconstitucional, motivo pelo qual a ação não merece cognição no tocante à ofensa a lei federal. Criação de despesas sem indicação da origem dos recursos para cobrir os novos encargos. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º; 24, § 2º, n. 2; 25; 47, incs. II, XIV e XIX, “a”; 144; e 176, I, da Constituição Estadual. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Prefeita Municipal de Guarujá, tendo por objeto a Lei nº 3.971, de 05 de novembro de 2012, deste Município, que “Cria o serviço Cegonha móvel no município de Guarujá e dá outras providências”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a lei em questão contém vício de iniciativa, por usurpar atividade própria do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º; 24, § 2º, n.2; 25 e 47, incs. II, XI, XIV, XVII e XIX da Constituição Estadual.

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 56/60), em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 53/54).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O controle abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), ainda imite, remeta ou reproduze norma constitucional central, inclusive as de absorção ou reprodução obrigatória, sendo vedado o seu contraste com o direito infraconstitucional, motivo pelo qual a ação não merece cognição no tocante à ofensa à Lei  Orgânica do Município e à lei de Responsabilidade Fiscal.

A ação é procedente.

A lei impugnada do Município de Guarujá assim dispõe:

Art. 1º Fica o município responsável pela remoção das mulheres pós parto e sua respectiva criança recém nascida, quando estas receberem alta hospitalar até a residência dos pacientes.

Parágrafo Único - Para a prestação do serviço que corresponde o presente Artigo, a municipalidade reservará veículo da frota municipal ou alugado e destinado a Secretaria de Saúde, podendo também terceirizar o serviço via processo licitatório ou convênio com cooperativas de transporte ou de saúde.

Art. 2º Estará autorizado o transporte de apenas 1 (hum) acompanhante com a mãe ou a criança no veículo de transporte.

Art. 3º Utilizará a municipalidade para este serviço de caráter público e gratuito, apenas veículos destinados a qualquer área do setor da saúde.

Art. 4º Serão apenas transportados as mães e as crianças que não necessitem de cuidados médicos ou de enfermaria durante o traslado.

Art. 5º Somente terá direito ao serviço que trata esta Lei, mães ou crianças recém nascidas atendidas pelo sistema público de saúde;

Art. 6º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, salvo disposição em contrário.”

Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º; 24, § 2º, n. 2; 25; 47, incs. II, XIV e XIX, “a”; 144; e 176, I, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 176 - São vedados:

I - o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;”

Como visto, a impugnada norma cria um programa de governo, impondo à Administração a obrigação de promover a "remoção das mulheres pós-parto e sua respectiva criança recém-nascida, quando estas receberem alta hospitalar até a residência dos pacientes", gerando, consequentemente, maiores despesas, o que importa em invasão da seara administrativa.

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa que visa o transporte de mulheres que tenham dado à luz, juntamente com o recém-nascido, até suas residências, no município de Guarujá, onerando, desta forma, a Administração.   Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 2001, págs. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Note-se, outrossim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com o disposto no art. 25, da Constituição Bandeirante e com o art. 176, I do mesmo diploma que coíbe o “o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual”.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25), COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS, PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Diante do exposto, nosso parecer é pela procedência da ação.

São Paulo, 17 de setembro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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