Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 0138717-41.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeita Municipal de Guarujá
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarujá
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.743, de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo a instituir o programa de Combate ao Bullying, de ação interdisciplinar e de participação comunitária, nas escolas municipais e privadas do Município de Guarujá”.
2) Inconstitucionalidade. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (arts. 25 e 176, I da Constituição Estadual).
3) Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX e 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 3.743, de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo a instituir o programa de Combate ao Bullying, de ação interdisciplinar e de participação comunitária, nas escolas municipais e privadas do Município de Guarujá”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes e criar despesa sem indicação fonte de recurso. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XI, XIV e XVII, e 144 da Constituição Estadual.
Foi indeferida a liminar (fls. 63/64)
Citado regularmente (fl. 71), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 74/76).
Devidamente notificado (fl. 72), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações, às fls. 78/84, defendendo a validade do ato normativo impugnado.
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
Procede o pedido.
A Lei nº 3.743, de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo a instituir o programa de Combate ao Bullying, de ação interdisciplinar e de participação comunitária, nas escolas municipais e privadas do Município de Guarujá”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:
“Artigo 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a instituir o Programa de Combate ao Bullying, de ação interdisciplinar e de participação comunitária, nas escolas públicas e privadas, no Guarujá.
Parágrafo único – Entende-se por Bullying atitudes de violência física ou psicológica, intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente, praticadas por um individuo (bully) ou por grupo de indivíduos, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-las ou agredí-la, causando dor e angústia à vitima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.
Artigo 2º - A violência física ou psicológica pode ser evidenciada em atos de intimidação, humilhação e discriminação, entre os quais:
I) - Insultos pessoais;
II) Comentários pejorativos;
III) Ataques físicos;
IV) Grafitagens depreciativas;
V) Expressões ameaçadoras e preconceituosas;
VI) Isolamento social;
VII) Ameaças;
VIII) Pilhérias.
Artigo 3º - O bullying pode ser classificado em três tipos, conforme as ações praticadas:
I) Sexual: assediar, induzir e/ ou abusar;
II) Exclusão social: ignorar, isolar e excluir;
III) Psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, infernizar, tiranizar, chantagear e manipular.
Artigo 4º - Para a implementação deste programa, a unidade escolar criará uma equipe multidisciplinar, com a participação de docentes, alunos, pais e voluntários, para a promoção de atividades didáticas, informativas, e de orientação e prevenção.
Artigo 5º - São objetivos do programa:
I) Prevenir e combater a pratica de bullying nas escolas;
II) Capacitar docentes e equipe pedagógica para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema;
III) Incluir, no Regimento Escolar, após ampla discussão no Conselho de Escola, e no Conselho Municipal de Educação regras normativas contra o bullying;
IV) Esclarecer sobre os aspectos éticos e legais que envolvem o bullying;
V) Observar, analisar e identificar eventuais praticantes e vitimas de bullying nas escolas;
VI) Discernir, de forma clara e objetiva, o que é brincadeira e o que é bullying;
VII) Desenvolver campanhas educativas, informativas e de conscientização com a utilização de cartazes e de recursos de áudio e áudio-visual;
VIII) Valorizar as individualidades, canalizando as diferenças para a melhoria da auto-estima dos estudantes;
IX) Integrar a comunidade, as organizações da sociedade e os meios de comunicação nas ações multidisciplinares de combate ao bullying;
X) Coibir atos de agressão, discriminação, humilhação e qualquer outro comportamento de intimidação, constrangimento ou violência;
XI) Realizar debates e reflexões a respeito do assunto, com ensinamentos que visem a convivência harmônica na escola;
XII) Promover um ambiente escolar seguro e sadio, incentivando a tolerância e o respeito mútuo;
XIII) Propor dinâmicas de integração entre alunos e professores;
XIV) Estimular a amizade, a solidariedade, a cooperação e o companheirismo no ambiente escolar;
XV) Orientar pais e familiares sobre como proceder diante da prática de bullying;
XVI) Auxiliar vítimas e agressores.
Artigo 6º - Compete à unidade escolar aprovar um plano de ações, no Calendário da Escola, para a implantação das mediadas previstas no programa.
Artigo 7º - Fica autorizada a realização de convênios e parcerias para a garantia do cumprimento dos objetivos do programa.
Artigo 8º - A escola poderá encaminhar vítimas e agressores aos serviços de assistências médica, social, psicológica e jurídica, que poderão ser oferecidos por meio de parcerias e convênios.
Artigo 9º - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data de sua publicação.
Artigo 10 - As despesas decorrentes da execução orçamentária da presente Lei, correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Artigo 11 – Esta Lei entra em vigor na data
de sua publicação.”
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao
Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos
Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de
administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto,
sobre:
a) organização e funcionamento da
administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação
ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com
autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A matéria disciplinada pela lei impugnada
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal,
com auxílio dos Secretários Municipais.
A instituição de programa municipal de combate ao Bullying de ação interdisciplinar e de participação comunitária, nas escolas municipais e privadas do Município é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, porque disciplina a forma e condições de prestação de serviço público referente ao ensino e educação.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo
e inserida na esfera do poder discricionário da
administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de
se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder
Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da autorização de instituição do programa de Combate ao Bullying, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação e implantação de programas e disciplina dos serviços públicos em benefício dos cidadãos. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela
em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades
inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma
primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia
e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a Lei, ao regulamentar, ainda que parcialmente um serviço público, de um lado,
viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção
da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art.
24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao
Poder Executivo.
Criar programas e disciplinar serviços públicos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples lei autorizativa, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.
A razão é simples: o Chefe do Poder Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
A utilização recorrente de leis autorizativas tem objetivos de cunho nitidamente político, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida ao autorizar o Município à instituição do programa de combate ao Bullying, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.
Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.743, de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá.
São Paulo, 18 de novembro de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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