Parecer
Processo n. 0139456-14.2013.8.26.0000
Requerente: APAS – Associação Paulista de
Supermercados
Requerido: Prefeito e Presidente da Câmara
Municipal de Bauru
Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 6.379, de 25 de junho de 2013, do Município de Bauru. Disciplina da limitação do tempo de atendimento ao público nos caixas de supermercados e hipermercados. Inocorrência de invasão à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, à reserva da Administração ou à competência normativa federal ou estadual. Inexistência de ofensa aos princípios de isonomia, livre iniciativa econômica, razoabilidade e proporcionalidade. Vinculação da multa a múltiplos de salário mínimo. Parcial procedência da ação. 1. A disciplina do comércio mediante lei que estabelece limite de tempo para atendimento nos caixas de supermercados e hipermercados não é matéria da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo nem da reserva da Administração. 2. Inconsistência de violação ao art. 25, CE/89, porque a norma não cria direta e imediatamente obrigações financeiras para o poder público, impondo deveres somente aos particulares, não bastasse veicular questão de fato dependente de prova. 3. A meta da lei é alcançar grandes conglomerados comerciais do ramo exatamente porque neles o tempo de atendimento nos caixas é superior àqueles estabelecimentos de menor porte. 4. Tanto a margem de tolerância de espera instituída quanto as sanções cominadas não se mostram absurdas, ilógicas, inadequadas ou irracionais, considerando que estabelecem reprimendas de maneira escalonada à vista da reincidência. 5. Inexistência de violação à competência normativa federal ou estadual na disciplina do comércio orientada pelo interesse local. 6. Inconstitucionalidade da vinculação da multa a múltiplos de salário mínimo (art. 3º, II a IV, Lei n. 6.379/13). 7. Parcial procedência da ação.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada por APAS – Associação Paulista de Supermercados impugnando a Lei n. 6.379,
de 25 de junho de 2013, do Município de Bauru, de iniciativa parlamentar, que
dispõe sobre o tempo de atendimento ao público nos supermercados e hipermercados,
por alegação de incompatibilidade com os arts. 5º, 25, 47, XI, 111, 144 e 175
da Constituição Estadual (fls. 02/24).
2. Concedida a liminar (fls. 63/64), a douta
Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da lei contestada (fls. 78/79),
e as informações prestadas pelo Prefeito e pela Câmara Municipal de Bauru
defendem sua constitucionalidade (fls. 81/87, 92/101).
3. É
o relatório.
4. O
requerente aduz que a lei local padece de inconstitucionalidade por invasão da
competência normativa federal e estadual (art. 275, Constituição Estadual c.c.
art. 24, V e VIII, Constituição Federal) e inexistência de interesse local
(art. 30, Constituição Federal) além de impossibilidade da vinculação ao
salário-mínimo nas sanções pecuniárias adotadas (art. 144, Constituição
Estadual c.c. art. 7º, IV, Constituição Federal) e de violação à liberdade de
iniciativa e à proporcionalidade e, por derradeiro, ofensa à cláusula da
separação de poderes em razão de sua iniciativa parlamentar (arts. 5º, 47, II e
XI, e 144, Constituição Estadual).
5. Não
se configura violação à cláusula da separação de poderes em razão da iniciativa
parlamentar da lei local impugnada.
6. A
reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo deve ser expressa
e taxativa em obséquio ao princípio da separação dos poderes e à regra da
iniciativa legislativa comum ou concorrente (arts. 2º e 61, caput e § 1º, Constituição Federal;
arts. 5º e 24, § 2º, Constituição Estadual), não sendo presumida. Igualmente
não se constata a existência de reserva da Administração contida no art. 47,
II, XIV e XIX, da Constituição Estadual, porque a matéria não se amolda em
qualquer dessas disposições que permitem, excepcionalmente, a emissão de atos
normativos pelo Chefe do Poder Executivo sem interferência do Poder
Legislativo.
7. As
normas do processo legislativo federal são de observância simétrica para os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
8. Regra é a iniciativa legislativa
pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa
categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume.
Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa
legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:
“(...) a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
9.
As reservas de iniciativa
legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do
Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em
que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a
funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).
“A disciplina jurídica do
processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois
residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o
procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício
do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao
versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se
legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de
agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição,
dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo
constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil,
dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício
compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).
10. A lei não tratou de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo, e tampouco houve violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.
11. A matéria sujeita à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo, por ser direito estrito, deve ser interpretada restritivamente, como se decidiu (STF, ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, 02-04-2007, DJe 15-08-2008; ADI-MC 724, Rel. Min. Celso de Mello, 07-05-1992, DJ 27-04-2001; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, DJ 17-11-2006).
12. As matérias em que há iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, em conformidade com a Constituição do Estado de São Paulo, são indicadas taxativamente no art. 61, § 1º, II, da Constituição Federal (reproduzido no art. 24, § 2º, da Constituição do Estado), e cuja leitura revela claramente que a lei não trata de nenhum dos assuntos arrolados.
13. Não há, no caso, qualquer vestígio nem mesmo tênue de desrespeito ao princípio da separação de poderes, estabelecido no art. 2º da Constituição Federal, repetido no art. 5º da Constituição Estadual.
14. Inadmissível suscitar ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual.
15. A lei não cria encargos financeiros novos para sua execução pelo Poder Executivo, senão aos particulares.
16. Ademais, a discussão sobre a geração de despesa pública, sedimentada no argumento de ações estatais para fiscalização e execução da lei, extravasa o âmbito estreito do contencioso abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade pela introdução de matéria de fato e dependente de prova.
17. Se é impossível cogitar que
do exercício de sua execução e fiscalização derivem despesas novas sem
cobertura financeiro-orçamentária (relacionadas à hipotética criação de cargos
públicos), pois, a atividade comercial já é precedentemente absorvida pela
polícia administrativa preexistente, não é viável concluir que do citado art.
25 soe que toda e qualquer lei que gere despesa só possa advir de projeto de
autoria do Executivo. O Supremo Tribunal Federal tem estimado que:
“não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).
18. É que, diferentemente do
ordenamento constitucional anterior, “não havendo mais a expressa disposição no
texto constitucional de que é iniciativa privativa do Presidente da República
as leis que disponham sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste,
não sendo cabível interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende
inclusive nossa Suprema Corte”, assinala José Maurício Conti ao comentar a
inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou aumentam despesa
pública (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury
Scaff).
19. Além disso, o art. 25 da
Constituição do Estado tem aplicação circunscrita ao “projeto de lei que
implique a criação ou o aumento de despesa pública”, como explicita a própria
norma com nítido intuito de responsabilidade fiscal ao exigir que, nessa
circunstância, conste a indicação de recursos disponíveis, próprios para
atendimento dos novos encargos. Sua incidência é adstrita a leis que
diretamente importem repercussão positiva na despesa pública, e não em qualquer
lei. Em se tratando de lei que manifestamente não produza esse impacto, é
descabida sua arguição por traduzir matéria de fato e de prova inadmissível no
seio do controle objetivo de constitucionalidade.
20. A lei prescreve obrigação a
particulares enraizada na polícia municipal sobre o comércio, não se podendo
cogitar que do exercício de sua execução e fiscalização derivem despesas novas
sem cobertura financeiro-orçamentária, pois, já são precedentemente absorvidas
pela polícia administrativa preexistente.
21. Neste sentido, calha invocar o entendimento do
colendo Órgão Especial:
“Nem tampouco há que se falar que a previsão
legal contestada nos autos implicaria no indevido aumento de despesas do ente
público local, sem a respectiva indicação da fonte de custeio, em violação ao
comando contido no artigo 50 da Lei Orgânica do Município de Jundiaí, que
reproduz a regra contida no artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo.
Com efeito, a perene fiscalização das atividades
comerciais estabelecidas em seu território insere-se no poder-dever da
Administração Municipal, que dela não pode furtar-se; assim, não merece
acolhida o argumento de que a proibição de comercializarem a substância ‘organofosforado
carbamato’, imposta aos ‘pet shops’, casas de ração e similares no Município de
Jundiaí, implicaria no aumento de despesa do ente público local, ao estabelecer
encargo ao Poder Executivo.
Ora, tais quais todas as demais
empresas instaladas, os estabelecimentos destinatários dessa norma legal devem estar
sob permanente vigilância dos órgãos públicos locais responsáveis, aos quais
incumbe verificar o pleno atendimento da legislação de regência, não se podendo
então falar na criação de nova obrigação ao Município pela Lei n° 7.341/09.
A propósito, já decidiu esta Corte Paulista, em caso análogo, que ‘o dever de fiscalização do cumprimento das normas é conatural aos atos normativos e não tem, no caso, efeito de gerar despesas ao Município. Além disso, a matéria tratada na lei impugnada é de polícia administrativa, e as obrigações foram impostas aos particulares, exclusivamente’ (v. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 0006247-80.2012.8.26.0000, relator Desembargador Guerrieri Rezende). (...)” (TJSP, ADI 0580128-04.2010.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, m.v., 30-01-2013).
22. Não se denota na lei qualquer
violação à liberdade de iniciativa econômica ou ao princípio da
proporcionalidade. A meta da lei é alcançar grandes conglomerados comerciais
desse ramo exatamente porque neles o tempo de atendimento nos caixas é superior
àqueles estabelecimentos de menor porte. Tanto a margem de tolerância de espera
instituída quanto as sanções cominadas não se mostram absurdas, ilógicas,
inadequadas ou irracionais, considerando que estabelecem reprimendas de maneira
escalonada à vista da reincidência.
23. Ademais, reiterada pronúncia de
constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, de leis municipais que
disciplinam o tempo de atendimento em agências de instituições bancárias,
pronunciando sua constitucionalidade, implica a dispensa de idêntico tratamento
para o tempo de atendimento ao público nos supermercados e hipermercados.
24. Por isso, é improcedente a alegação
de invasão da competência normativa alheia e consequente incompetência
normativa municipal.
25. Não se trata, à evidência, de
violação ao art. 24, V e VIII, da Constituição Federal, ou ao art. 275 da
Constituição Estadual, que não eliminam a competência municipal para disciplina
do comércio.
26. É lícito à lei local a obrigar os
estabelecimentos comerciais do ramo a prestar serviços em tempo razoável nos
caixas, estipulando períodos razoáveis e correlatas sanções para o
descumprimento.
27. Efetivamente, há predominância do
interesse local, pois, o maior ou menor tempo de atendimento é variável
conforme a densidade demográfica de cada cidade, impondo-se tão somente a
obrigação nela esboçada às regiões de maior concentração populacional em que
existe justamente afluxo mais elevado de consumidores.
28. Resta a apreciação da vinculação
das sanções pecuniárias dos incisos II a IV do art. 3º da lei contestada ao
salário mínimo.
29. Com efeito, a lei estabeleceu as
multas em múltiplos de salário mínimo. O art. 144 da Constituição Estadual, norma
remissiva de princípios da Constituição Federal aos Municípios, permite o
contraste desses dispositivos com a proibição constante do inciso IV do art. 7º
da Constituição Federal.
30. O Supremo Tribunal Federal abona o
entendimento da inadmissibilidade de vinculação da multa de polícia
administrativa ao salário mínimo:
“SALÁRIO MÍNIMO
- VINCULAÇÃO - Esbarra na cláusula final do inciso IV do artigo 7º da
Constituição Federal a tomada do salário mínimo como parâmetro de
cálculo de multa” (STF, AgR-RE 445.282-PR, 1ª Turma, Rel. Min. Marco
Aurélio, 07-04-2009, v.u., DJe 05-06-2009).
“Fixação de horário de funcionamento para farmácias no Município. Multa administrativa vinculada a salário mínimo. - Em casos análogos ao presente, ambas as Turmas desta Corte (assim a título exemplificativo, nos RREE 199.520, 175.901 e 174.645) firmaram entendimento no sentido que assim vem sintetizado pela ementa do RE 199.520: ‘Fixação de horário de funcionamento para farmácia no Município. Lei 8.794/78 do Município de São Paulo. - Matéria de competência do Município. Improcedência das alegações de violação aos princípios constitucionais da isonomia, da livre concorrência, da defesa do consumidor, da liberdade de trabalho e da busca ao pleno emprego. Precedente desta Corte. Recurso extraordinário conhecido, mas não provido’. - Dessa orientação não divergiu o acórdão recorrido. - O Plenário desta Corte, ao julgar a ADIN 1425, firmou o entendimento de que, ao estabelecer o artigo 7º, IV, da Constituição que é vedada a vinculação ao salário-mínimo para qualquer fim, ‘quis evitar que interesses estranhos aos versados na norma constitucional venham a ter influência na fixação do valor mínimo a ser observado’. Ora, no caso, a vinculação se dá para que o salário-mínimo atue como fator de atualização da multa administrativa, que variará com o aumento dele, o que se enquadra na proibição do citado dispositivo constitucional. - É, portanto, inconstitucional o § 1º do artigo 4º da Lei 5.803, de 04.09.90, do Município de Ribeirão Preto. Recurso extraordinário conhecido em parte e nela provido, declarando-se a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 4º da Lei 5.803, de 04.09.90, do Município de Ribeirão Preto” (STF, RE 237.965-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 10-02-2000, v.u., DJ 31-03-2000, p. 61).
31. A vinculação da multa em múltiplos
de salário mínimo não guarda finalidade com os bens que a norma visa à tutela e
amesquinha a competência municipal impedida da fixação do valor de suas sanções
pecuniárias.
32. Destarte, são inconstitucionais os
incisos II a IV do art. 3º da Lei n. 6.379, de 25 de junho de 2013.
33. Face ao exposto, opino pela parcial
procedência da ação para declarar a inconstitucionalidade dos incisos II a IV
do art. 3º da Lei n. 6.379, de 25 de junho de 2013, do Município de Bauru, com
o art. 144 da Constituição Estadual.
São
Paulo, 26 de setembro de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj